Que dúvida cruel. Esse questionamento que se insere no rol de tantos outros que afligem a existência humana, suscita vários tipos de perguntas: de onde viemos, para onde vamos, o que fazemos aqui, e até mesmo, quem somos nós, no entanto, observe a preposição “de” que antecede ao “quem” neste título. Então em que contexto está inserido esse questionamento? Místico, filosófico, científico. Certamente poderia estar inserido em todos eles, mas também há outros que podem ser abarcados pelo assunto em pauta, também profundos, relevantes e sérios, talvez por serem corriqueiros, sua relevância passe despercebida pela maioria das pessoas, mas basta atentar um pouco mais para a própria vida para perceber a importância desses aspectos na curta trajetória que compõe nossa caminhada.
Seria tão conveniente afirmar que qualquer um pertence a si mesmo. A princípio parece óbvia essa afirmação, cada um é o que é e, portanto, senhor de si que tudo pode no que se refere a ele, mas refletindo um pouco mais surgem indagações a respeito do assunto antes tão trivial, por exemplo: ter que assumir a certeza que a liberdade pessoal esbarra nas barreiras impostas pela própria necessidade pessoal do convívio. A exceção dos eremitas, a todo resto cabe enquadrar-se nas normas sociais que regem as sociedades humanas, normalmente em acordo com suas diretrizes ideológicas, políticas ou religiosas. Eis a ponta do “iceberg”, e ao se aprofundar na questão afloram mais e mais questionamentos, se não bastasse isso, começam a povoar a mente outras percepções íntimas, igualmente inquietantes.
Desde os primórdios da humanidade até os dias de hoje as teorias criacionistas vem permeando as dúvidas sobre as origens humanas, segundo elas, todas as coisas, tudo que existe neste vasto universo, provém do poder Deus, reforçando nas mais diversas culturas a crença em um ente superior, onipotente, soberano absoluto do cosmos, por conseguinte, senhor de todas as pessoas deste planeta. Essa análise superficial denota, sobretudo, segundo as crenças, que os humanos são o fruto da graça divina, e ao qual devemos respeito, pois fomos feitos sua imagem e semelhança, já que Deus é o pai criador. Perante ele somos todos irmãos, independentemente do sexo, da cor, do credo, etc. Essa crença sobre a origem da humanidade incute na mente de muitas pessoas uma relação de propriedade entre o divino e sua própria vida, instruindo o “temor” frente ao seu poder, em muitos casos, entregando-se a fé cega, contrariando a própria razão e o instinto de preservação, o ser humano é capaz de se destruir em nome da religião, assim muitos fanáticos suicidam imaginando que ao fazê-lo alcançarão a salvação.
Não é de hoje que muitos Estados, chamado teocráticos, cientes desta propensão humana, se aproveitam dela para justificar seu domínio sobre o povo, respaldando no santíssimo a legitimidade do governo, justificando que sua autoridade foi concedida por Deus, impondo qualquer arbitrariedade como se isto consumasse o cumprimento do desejo divino, impedindo ao crédulo cidadão comum o direito de reação diante de algum absurdo, quem ousará afrontar a Deus.
Para efeito de “justiça”, “todos são iguais perante ela”, o Estado, em teoria, retira das pessoas seu “status”, considerando-as como entidades individuais, assim passam a fazer parte da “massa” chamada “povo”, constituída por cidadãos de todas as camadas sociais que compõe a sociedade civil. Para Kant (1724-1804), quando as pessoas constituem um estado, optam por consequência em renunciar a sua liberdade, essa condição ocorre em decorrência da mudança de posição necessária para que possam participar como membros ativos da coisa pública, isto é, o povo enquanto cidadãos configura o que seja Estado, no entanto, não seria verídico afirmar que o ser humano submetido às regas do Estado, abdicou de sua liberdade ou de parte dela em função do sistema, ao invés disso, passou a usufruir das leis que asseguram a civilidade, o estado de direito e todas as vantagens jurídicas que o assistem. Acatando as regras impostas pelo Estado, subordinando-se a uma autoridade superior, as pessoas sentem-se guarnecidas pelo espírito coletivo, assumem uma liberdade embasada nos valores morais e éticos do grupo, aderindo espontaneamente às normas sociais que elegeram para si mesmas. Ocorre, entretanto, uma contradição, a estratificação financeira da sociedade conforme o poder aquisitivo e a relevância da camada social que ocupa o cidadão, define seu “status”, coisa que acaba por influenciar o comportamento do Estado junto a ele, o questionável prestígio.
Apesar de tudo, é razoável pensar que o cidadão enquanto indivíduo passa a ser “objeto” do poder do governo, submetendo sua conduta aos deveres inerentes a esta premissa, em contrapartida o Estado lhe assegura o acesso aos seus direitos.
Liberdade versus autonomia, ainda que a divergência entre essas palavras não possa ser ignorada, delas dependem o intrincado equilíbrio que determina ao ser humano o espaço que ocupa dentro de seu ambiente. Esse parâmetro intangível baliza a conduta individual estabelecendo os limites a que cada um tem direito, submetendo anseios e vontades particulares a um conflito de interesses inseparável, por um lado a ânsia de ser livre, por outro necessidade de fazer parte do grupo, comprovada pela necessidade humana de revelar para todos que também é alguém e que faz parte do mundo.
Embora o homem não viva em colmeias, é uma criatura altamente interativa, em hipótese alguma ele pode permitir a estabelecimento de uma situação de anomia social, a sociedade enquanto referência é um norte necessário para orientar e complementar o sentido da sua existência, estimulando-o a definir para si um planejamento do que espera do futuro, ponderando antes de agir, estimando as consequências em função das atitudes que toma no presente, conduzindo-o pelos caminhos tortuosos da vida de acordo com as necessidades que o levam a querer melhorar, não agindo apenas em prol de si mesmo, mas de forma mais abrangente, humana, extrapolando a realidade na qual está inserido. Inicialmente é constituída pelo escopo social que experimenta, priorizando a família, posteriormente, terceiros que fazem parte de sua convivência e depois, aqueles que estiverem ao alcance da alguma ajuda.
Quem, por mais independente que seja, pode afirmar de sã consciência que jamais dependerá de alguém, sendo capaz de manter-se sempre sozinho, em tudo? O eremita, talvez, mas sucumbirá a primeira enfermidade séria. Os jovens pensam que podem, mas a maturidade os ensina o contrário. Não é difícil perceber como o homem é vulnerável e o quanto depende da família e dos amigos, precisa de algum calor humano próximo para que possa manter-se vivo e saudável, física e psicologicamente.
Enquanto dádiva, a vida é uma é mais que uma oportunidade para poder ser, viver e aprender, ela oferece gratuitamente para os humanos o privilégio de evoluir e de posterizar-se além dela. Seria através dos herdeiros que carregam o sangue da família? Também. Mas isso não configura vantagem alguma, porque essa característica é comum a outros seres vivos, até mesmo a mais insignificante das criaturas vivas, é capaz de deixar sua herança genética nos descendentes. Que prerrogativa seria esta afinal?
Uma regalia concedida pela Natureza aos seres chamados racionais, demonstrada na possibilidade única que foi agraciada ao homem, a de transmitir tudo que a vida e seus ancestrais o ensinaram para os descendentes mais jovens; o carinho, a educação, a importância dos valores imateriais, o zelo pela moral, e não só estes, mas também tudo aquilo que pode contribuir na construção de um mundo melhor, levando a todos o benefício do saber, de uma palavra de bem ou de um alento, qualquer coisa que ajude alguém a ficar ou ser melhor do que já é.
Essa virtude maravilhosa, exclusivamente humana, está condicionada ao desprendimento, a bondade e a generosidade, não há espaço para egoísmo naqueles que a praticam, este é o pré-requisito, ter que compartilhar, dividir, que seja apenas com os entes queridos, já é um começo, mas nada impede de repartir as coisas que são boas com dezenas, centenas ou milhares. Muitos o fazem ou já o fizeram em suas vidas, porém, mesmo aqueles que já se foram, também podem fazê-lo, não através da forma humana, mas na memória, nos pensamentos e conhecimentos que legaram a humanidade, superando os limites do “seu” tempo, entregando suas existências a outrem, escrevendo nossa história.
Este ato sublime, de sacrificar quiçá a própria vida, é tão extraordinário quanto simples, se hoje estamos aqui, desfrutando deste mundo grandioso, é porque nossos pais nos doaram suas vidas sem esperar recompensas e o mínimo que podemos fazer sendo gratos é oferecer a nossa, a eles e aos filhos, um simples agradecimento por todo amor que recebemos deles.
De quem somos nós?
Dedico este texto ao meu querido pai, permitindo-me desfrutar de sua companhia enquanto esteve enfermo, proporcionando essas divagações sobre a vida.