sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A tentação totalitária

O texto reproduzido abaixo é de autoria do recifense Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé, filósofo, professor, escritor, colunista e Ph.D em filosofia pela Universidade de Tel Aviv, publicado no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo de 18 de julho de 2011.



Primeiro vem a certeza de si mesmo como agente do "bem total", depois você vira autoritário em nome dele


VOCÊ SE considera uma pessoa totalitária? Claro que não, imagino. Você deve ser uma pessoa legal, somos todos.
Às vezes, me emociono e choro diante de minhas boas intenções e me pergunto: como pode existir o mal no mundo? Fossem todos iguais a mim, o mundo seria tão bom... (risadas).
Totalitários são aqueles skinheads que batem em negros, nordestinos e gays.
Mas a verdade é que ser totalitário é mais complexo do que ser uma caricatura ridícula de nazista na periferia de São Paulo.
A essência do totalitarismo não é apenas governos fortes no estilo do fascismo e comunismo clássicos do século 20.
Chama minha atenção um dado essencial do totalitarismo, quase sempre esquecido, e que também era presente nos totalitarismos do século 20.
Você, amante profundo do bem, sabe qual é? Calma, chegaremos lá.
Você se lembra de um filme chamado "Um Homem Bom", com Viggo Mortensen, no qual ele é um cara legal, um professor universitário não simpatizante do nazismo (o filme se passa na Alemanha nazista), e que acaba sendo "usado" pelo partido?
Pois bem. Neste filme, há uma cena maravilhosa, entre outras. Uma cena num parque lindo, verde, cheio de árvores (a propósito, os nazistas eram sabidamente amantes da natureza e dos animais), famílias brincando, casais se amando, cachorros correndo, até parece o Ibirapuera de domingo.
Aliás, este é um dos melhores filmes sobre como o nazismo se implantou em sua casa, às vezes, sem você perceber e, às vezes, até achando legal porque graças a ele (o partido) você arrumaria um melhor emprego e mais estabilidade na vida.
Fosse hoje em dia, quem sabe, um desses consultores por aí diria, "para ter uma melhor qualidade de vida".
E aí, a jovem esposa do professor legal (ele acabara de trocar sua esposa de 40 anos por uma de 25 -é, eu sei, banal como a morte) o puxa pelo braço querendo levá-lo para o comício do partido que ia rolar naquele domingão no parque onde as famílias iam em busca de uma melhor qualidade de vida.
Mas ele não tem nenhuma vontade de ir para o comício porque sente um certo "mal-estar" com aquilo tudo. Mas ela, bonita, gostosa, loira, jovem e apaixonada (não se iluda, um par de pernas e uma boca vermelha são mais fortes do que qualquer "visão política de mundo"), diz: "meu amor, tanta gente junta querendo o bem não pode ser tão mal assim".
É, meu caro amante do bem, esta frase é uma das melhores definições do processo, às vezes invisível, que leva uma pessoa a ser totalitária sem saber: "quero apenas o bem de todos".
Aí está a característica do totalitarismo que sempre nos escapa, porque ficamos presos nas caricaturas dos skinheads: aquelas pessoas, sim, se emocionavam e choravam diante de tanta boa vontade, diante de tanta emoção coletiva e determinação para o bem.
Esquecemos que naqueles comícios, as pessoas estavam ali "para o bem".
Se você tem absoluta certeza que "você é do bem", cuidado, um dia você pode chorar num comício achando que aquilo tudo é lindo e em nome de um futuro melhor.
E se essa certeza vier acompanhada de alguma "verdade cientifica" (como foi comum nos totalitarismos históricos) associada a educadores que querem "fazer seres humanos melhores" (como foi comum nos totalitarismos históricos) e, finalmente, se tiver a ambição política, aí, então, já era.
Toda vez que alguém quiser fazer um ser humano melhor, associando ciência (o ideal da verdade), educação (o ideal de homem) e política (o ideal de mundo), estamos diante da essência do totalitarismo.
O que move uma personalidade totalitária é a certeza de que ela está fazendo o "bem para todos", não é a vontade de destruir grupos diferentes do dela.
Primeiro vem a certeza de si mesmo como agente do "bem total", depois você vira autoritário em nome desse bem total.
O melhor antídoto para a tentação do totalitarismo não é a certeza de um "outro bem", mas a dúvida acerca do que é o bem, aquilo que desde Aristóteles chamamos de prudência, a maior de todas as virtudes políticas.
Não confio em ninguém que queira criar um homem melhor.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O Preço da Vaidade


Quem poderia ser culpado, além do o próprio homem, como grande responsável pelos sucessos e derrotas que experimenta ao longo de sua existência? Ainda que a vida se apresente mais dura para alguns que para outros, mais afortunados, questionar o destino que coube a cada um não irá solucionar ou amenizar o problema, serve apenas de muleta para justificar alguma postura incompatível com a “estatura” humana. A habilidade do homem em se justificar ou encontrar motivos para comportamentos repreensíveis é tão natural, que aparenta ser inata. Praticamente todas as pessoas, em maior ou menor grau, tendem a buscar uma causa plausível para sua “fraqueza”. Talvez, a necessidade humana de conviver em grupos, induza o homem seguir normas e convenções sociais que disciplinam, moralizam e orientam sua conduta dentro dos padrões “éticos” aceitos pela sociedade, força-o a desenvolver habilidades e conhecimentos que o permita sobressair, se destacar ao interagir com o restante do grupo. Ao seguir ideias e convenções pertinentes a sua cultura, adota uma variedade de preceitos que, com certeza, acata por convenção e desconsidera sua razão. O ato de instruir ou educar tem, obviamente, sua relevância indubitável, no entanto, a pedagogia, a arte de ensinar, vai muito além do simples desejo de preparar, ela pode ser utilizada para conduzir ao adestramento mental não apenas crianças, mas também adultos a adotarem convenientes conjuntos de ideias, mesmo sabendo que seu objetivo seja na maioria das vezes, a harmonia entre semelhantes, ao querer lapidar a comportamento pessoal incutindo hábitos e atitudes nomeadas equivocadamente de educadas, assim, embutem valores que acabam por influenciar a conduta e o pensamento individual, uma característica desejável aos mecanismos de controle social, pensamentos infiltrados que subliminarmente suprimem a inquietude e confortam o homem, direcionando-o para uma realidade manipulada, artificial. O fato é que a exacerbação do valor da aparência física, das posses, do aspecto profissional e até mesmo do intelecto, tem contribuído para fomentar nas pessoas a necessidade do lisonjeio, de se sentirem admiradas pelo que representam e não pelo que realmente são. Curiosamente, mesmo aqueles que aparentemente estavam imunes à frivolidade, sucumbem a ela, revelando o quanto é suscetível a personalidade humana.



Infelizmente o homem é sobrecarregado com todo tipo de cobranças, familiares, sociais, religiosas, profissionais, que o incentivam a seguir ou definir alguma forma de sobressair, revelar-se e se fazer perceber ante ao seu círculo de amizades, desde que isso não o predisponha contra as pessoas de seu convívio, a família ou a sociedade. Embora sutil, a máquina social oprime e massacra o homem sem que este observe a enorme pressão que está submetido, talvez porque esteja imerso nela desde que nasceu, sendo “ensinado” a seguir padrões pré-estabelecidos que agradam aos anseios da maioria, mas que ignora e tolhem suas manifestações ou questionamentos mais íntimos.



O sistema é maquiavelicamente tão bem engendrado para vender a felicidade que ela pode ser encontrada sob os mais diversos nomes, como: fortuna, sucesso, viagens, beleza, etc., ou seja, oferta-se uma ampla variedade de “mercadorias” que atribuem ao bem-estar um cunho comercial, um produto pronto para ser comprado, divulgado e vendido pela mídia seguindo os estereótipos culturais, parametrizando e difundindo um comportamento humano de uma sociedade que adula o culto a imagem, a ostentação e a futilidade.



A criatividade humana é tão fecunda e produtiva no que se refere à criação de mitos e fantasias, que cria em torno dessas ilusões uma atmosfera de que para ser feliz é necessário ter sucesso, poder comprar, possuir, no entanto, o desejo da posse desmedida gera a expectativa, obsessão e o medo, que fomentam uma série de cobranças individuais e trazem a reboque o estresse e a angústia de querer sempre “ter”, acompanhar “a moda”, exibir aquilo que de melhor se pode ter, porque “aquilo” representa o sucesso e confere respeito, conforme apregoam as normas de uma sociedade de consumo focada apenas nas aparências, distanciando os homens e gerando até mesmo violência pela posse material.

O ex-presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, proferiu em um de seus vários discursos uma frase cuja mensagem remete a uma reflexão mais profunda, disse ele:

“O grande inimigo da verdade não é muito frequentemente a mentira - deliberada, controvertida e desonesta, mas o mito - persistente, persuasivo, e não realista.”

Ao ter que adotar certos padrões de comportamento e normas sociais para se sentir incluído no ambiente em que vive, o homem tem que se submeter a rigores coletivos que sufocam muitas de suas intuições, consequentemente, tem, em muitos casos, que ignorar a si mesmo e relegar sua individualidade ao segundo plano, ao fazê-lo desrespeita seus anseios mais íntimos e transgride a tênue linha que o separa o bom-senso da insensatez, torna-se um escravo do sistema. Ao privar-se de suas vontades e sentimentos para atender demandas externas, ele abre mão de uma vasta possibilidade de realizações construtivas que poderiam nortear sua vida num sentido mais humano e menos materialista. Ao render-se aos hábitos da maioria despreza o intento de equilibrar essas partes, estabilidade que transforma a felicidade em algo duradouro, um estado de espírito e não um objeto a ser adquirido, fruto da ambição e do exibicionismo, mais um mito do prazer difundido pela mídia que incentiva o consumo e uma superficialidade cada vez maior.

Realmente não deve ser fácil reagir e partir para ação contra o “status quo”. O desprendimento necessário para superar as barreiras e regras que adotamos como verdades deverão certamente gerar o conflito, dificilmente o homem admitirá serenamente suas vulnerabilidades e o quanto é frágil diante as tentações materiais, esse humildade decorre do amadurecimento individual, uma caminhada solitária por um caminho íngreme e espinhoso até alcançar este refúgio, em contrapartida, a conquista é gratificante e perene, poder assenhorar-se de suas convicções e perceber que essa fortaleza compensa muitas vezes o sacrifício empreendido, livrando-se da frustração de ter que estar sempre querendo ser superior, se exibir e competir com o semelhante.

Quantas vezes o homem tende a queixar-se da sorte e esquece-se de observar a sua volta, vítima da cegueira social; ao fazê-lo verá que muitas de suas reclamações são dádivas diante dos problemas alheios. Inverter a ótica sobre os problemas talvez seja uma solução, em muitos casos, os transtornos independem de sua vontade, mas é certo que em algum momento surgirão, cedo ou tarde, é inevitável. Ao enfrentar às dificuldades que a vida lhe impõe, o ser humano tem a chance de vê-las como uma oportunidade, isso reduz seu desgaste e demonstra que certas diretrizes não dependem apenas de dele, mas sim de uma conjuntura mais abrangente de fatores a que todos estão sujeitos, desta forma não despende a preciosa energia que poderia ser investida em outros projetos, ou até mesmo em si, ao invés de se lamentar e “marretar em ferro frio”. Cabe ao homem aproveitar as experiências que a vida lhe concede e são um ótimo subsídio, para questionar o valor das coisas que o cercam, reavaliar e desprezar aquelas que são ou passaram a ser consideradas inúteis, sem ter que envelhecer para deduzir tardiamente quanto tempo foi perdido investindo no efêmero. A maturidade brinda ao homem o questionamento de valores que outrora foram venerados, como: o culto ao novo, ao dinheiro, a aparência, ao externo. Cultivar valores dessa natureza não traz garantia alguma de felicidade, mas encanta boa parte da juventude, que pode demorar muito tempo a perceber o equívoco.

Embora seja necessário zelar pela saúde física, a paranoica sociedade moderna estabeleceu padrões de comparação com figuras midiáticas, supostos protótipos da felicidade que ocultam em sua efêmera beleza a melancolia que vivem alguns desses ícones, verdade velada que pode contrastar com o tormento ou o desespero daquela personificação do sucesso, coisa pessoal que raramente vem a público, emergindo apenas quando a bulimia ou anorexia se tornam evidentes demais e falam por si. Cuidar da aparência é ótimo, mas superar o culto a imagem é também saudável, livra o homem da escravização da forma e serve para desopilar a mente destes padrões de perfeição, traz alento e ajuda superar a insatisfação pessoal para aqueles que não se encaixam na severa norma. Essa consciência faz aperceber-se do privilégio de ser individual, único, portanto, diferente de todo resto, sentimento que incentiva o homem amar a si mesmo e a aceitar as próprias diferenças e compreender as do próximo, ciente de que estes contrastes fazem parte da essência humana, cheia de qualidades, mas também imperfeita. Cada um, ao seu modo, luta para viver de acordo com suas limitações, e está cioso delas, porém, se a natureza lhe foi generosa, aproveita-se da sorte ou da fama para gozar de suas benesses, contudo, sem que isto constitua uma regra a ser aplicada sobre a vida, afinal, essa, como outras, é uma realidade transitória.

Ironicamente o homem é capaz de infligir o maior revés ou a mais terrível adversidade a ele mesmo, qual desafio pode ser superior que enfrentar as próprias dúvidas e temores, qual inimigo poderia interpor tantos obstáculos, dúvidas e incertezas sobre as atitudes a tomar. O escravo da cultura do consumo mantem-se acorrentado a valores vagos, mesmo desconhecendo a origem da verdade que ensejam, sem perceber que esses princípios o deprimem e o afastam de sua realização. Ao perseguir o mundo quimérico das aparências, alimenta e dá vida a espectros e assombrações emanados dos medos que lhe foram encucados, obrigando-o a prestar satisfações sociais, pensamentos cuja origem dificilmente conseguirá dominar se não possuir coragem e propensão a mudança. Apesar do governo de sua vida “estar” em suas mãos, a forma com que compreende e concebe o mundo depende de um mosaico de aspectos muito particulares que inevitavelmente tem que ser considerados para ajuizar uma opinião sensata sobre a vida para conseguir se libertar da ditadura das aparências e se conceder ao direito de escolha, livrar-se da adoção de moldes sociais fundamentados na vanglória, caso contrário, permanecerá trilhando o mesmo caminho batido por outros viajantes, guiados pela vaidade, seguindo para o mesmo “céu”.

Este texto não faz a apologia ao voto de pobreza ou que devamos levar uma vida franciscana, mas objetiva assinalar que certos valores como a vaidade estão sendo desvirtuados e destorcidos, adquirindo um caráter pernicioso sem que a maioria das pessoas se aperceba da ameaça que isso representa.