quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Instinto



Desde a antiguidade vem-se tentando estabelecer um consenso sobre um dos assuntos mais controversos da história humana, portanto qualquer ensaio sobre este tema tão complexo seria apenas mais uma gota num oceano de reflexões e contradições que vem ocupando muitas mentes brilhantes ao longo da caminhada humana na busca por respostas. Tecer considerações sobre o instinto curiosamente remete a uma profunda auto-observação da conduta pessoal, neste caso, servindo como baliza para redação de qualquer coisa útil, algo que pudesse agregar algum valor as pessoas interessadas sobre esse incógnito, e quem sabe, trazendo alguma reflexão nova.

De acordo com os dicionários é um estímulo ou “impulso” natural, involuntário, através do qual animais e também homens praticam certas ações sem saber os fins ou propósitos destas atitudes. Essa definição embora sucinta e um tanto simplista, incita uma seqüência de interrogações sobre este assunto. Será mesmo que o instinto se manifesta de maneira involuntária como afirmado acima? Poderíamos acatar essa explicação partindo da premissa que ela abrangeria somente o comportamento animal, ainda assim cabe perguntar, seria possível um ser humano agir de forma involuntária em condições normais, sem que houvesse a intervenção de um centro nervoso mais elaborado como o cérebro? E a consciência, onde ficaria nesta história, afinal essa não é uma das características de ser racional, possuir um motivo, uma “razão” que dispare uma reação muscular frente a um evento ou ameaça? Atribuir aos instintos uma responsabilidade sobre atitudes inconseqüentes, inoportunas e imponderadas configuram mais que esta “inconsciência”, é uma síntese do sonambulismo. Essa paralisia cerebral que muitas vezes culmina nas atitudes mais bizarras, sugere que a bestialidade humana lamentavelmente pode ser consciente, ou seja, exceto os sonâmbulos, o restante da humanidade age desperta, e se movimenta “acordada”, biologicamente, da mesma forma que os “animais”, animados por milhões de impulsos nervosos comandados pela parte “superior” do encéfalo. Seguindo o conceito biológico, que compreende o homem meramente como um animal enquanto criatura viva, essa afirmação não parece nenhum absurdo dependendo da ótica utilizada para analisá-la, principalmente quando se constata que ele pode ser regido pelos instintos em alguns momentos, assim como uma marionete a mercê de alguma força primitiva rompante. Em quantos casos percebe-se que essa justificativa é muito conveniente, delegar aos instintos ou alguma alteração psíquica a conseqüência dos comportamentos errôneos, ou da expressão da maldade humana, tratando isso como se fosse algo involuntário, é infelizmente, bastante comum.

Tal assunto, de tão labiríntico, exige mais que divagações superficiais sobre ele, não dá para abordar o aparentemente simples “instinto” sem se calçar de alguma informação mais elaborada, que tenha sido martelada ao longo dos tempos, no entanto, sem que se conseguisse molda-la ou chegar a uma unanimidade, uma explicação definitiva sobre ele.

Um dos primeiros a se pronunciar sobre ele foi o filósofo grego Sócrates (469 – 399 a.C.), ou seja, há mais de dois mil anos busca-se uma definição sobre o que seja instinto. Será que na busca pelo racionalismo Sócrates almejasse a posição de precursor de uma nova cultura, de uma nova etapa da humanidade, onde os princípios basilares constituíam-se do emprego da inteligência subsidiados pelo absolutismo racional, evitando ao máximo as manifestações dos instintos humanos, aquela energia que movimenta o homem e pode levá-lo a demonstrar seu lado mais sombrio, seus sentimentos mais primitivos? Esse questionamento foi  fundamentado simplesmente na forte ênfase socrática para utilização da razão e suscita outro em paralelo; o racionalismo radical seria um mecanismo subjetivo de auto-afirmação pessoal buscando uma forma de controlar as manifestações destes anseios “animais”? Partindo-se do pressuposto que a manifestação do instinto atenta contra a “consciência”, que além de ser uma prerrogativa humana, é também um referencial muito importante para o mundo filosófico. Talvez Sócrates soubesse respondê-la.

Discípulo de Sócrates, Platão (428 – 347 a.C.) elaborou sua concepção a respeito do ser humano, que compreendem uma parte material e outra etérea, que seria sua parte divina, conforme afirmava ele, atribuindo a ela um caráter imutável, enquanto a física, sucumbi aos efeitos do tempo e de sua própria condição, submetendo-a a constantes alterações. Segundo ele, nascemos com alma “perfeita”, mas não temos consciência disso, essa perfeição se refletia então nas verdades essenciais que estão gravadas indelevelmente na alma de cada um, mas devido às restrições do corpo físico, esses conhecimentos são “esquecidos” ao nascer. Segundo Platão a alma é dividida em três dimensões, uma delas, a do ser vivo, designa que o ser humano enquanto criatura vivente possui dois instintos naturais, o de sobrevivência e o de reprodução, que também é comum aos outros seres vivos.

Quais foram as observações que conduziram Platão a estas conclusões? O que levou ele a atribuir somente à fisiologia humana a responsabilidade pela procriação o a manutenção da vida? Por exemplo, dissociar o sexo e a fome das virtudes associadas ao intelecto é até razoável, mas seria justo? Teria ele estabelecido uma analogia com a sensação de satisfação e paz que se experimenta após o orgasmo ou a alimentação, sensação esta que serena, pelo ou menos momentaneamente, a tensão que impulsiona a manifestação destes instintos humanos. Aparentemente, para ele, os instintos seriam parte dessas restrições que o corpo impõe sobre a alma.

Durante idade moderna, surgem novas compreensões sobre os instintos, mais adiante na idade contemporânea o nascimento da psicologia trouxe novos ares e mais dúvidas sobre o controvertido assunto, apresentando uma nova série de considerações e interações para se questionar.

Coincidência ou não, o fato é que Freud (1856 – 1939) também dividiu o aparelho psíquico humano em três partes básicas, assim como Platão havia feito com alma humana dois mil anos antes. Freud nomeou estas partes como Consciente, Pré-consciente e Inconsciente, alegando que há conexões interligando todos os eventos mentais, no entanto, aqueles pensamentos ou sentimentos que aparentemente não estão relacionados a uma ordem de precedência estariam conectados ao inconsciente. Segundo o pai da psicanálise, o inconsciente abriga os elementos instintivos, que são alheios a consciência, e também os pensamentos reprimidos e censurados pela moral e pelos costumes, inculcados pela cultura vigente em que o ser se encontra inserido, mais os traumas. Ainda segundo Freud, esse material psicológico não é esquecido, mas apenas mascarado pela consciência que reluta em admiti-lo. Apesar da nomenclatura, o “inconsciente” freudiano não é estático e indiferente, existe vida no seu material, mantendo as memórias intactas, sem comprometer seu fator emocional, aspecto observável quando por algum motivo,  estas afloram. Paradoxalmente Freud acreditava que grande parte da “consciência” era “inconsciente”, que vários traços da personalidade humana, os impulsos (pulsões) e a energia psíquica são manifestações do inconsciente.

Para Freud os instintos ou pulsões humanos diferem daqueles que orientam o comportamento animal, entretanto, enquadra os instintos como necessidades físicas, muitas vezes suplantando a racionalidade.

Ele afirmou que o instinto possui quatro componentes característicos: uma fonte, uma pressão, um objeto e uma finalidade. A fome pode ser um exemplo banal, mas é bastante ilustrativo. O corpo carece de energia, então necessita de nutrientes para mantê-lo, “a fonte”. Quanto maior for a necessidade de energia, maior é a “pressão” que aflora à consciência, então sente-se fome. Essa sensação tende a aumentar até que a fome seja satisfeita pelo “objeto”, neste caso, a ingestão do alimento (da comida), atendendo consequentemente sua finalidade.

Interessante na observação freudiana é a vinculação do instinto às necessidades do corpo físico como força motriz inicial, contudo desassocia a consequência do movimento do estímulo biológico primário nos seres humanos. Deste raciocínio ele deduziu que o mecanismo para um ser humano satisfazer seus instintos está mais associado aos seus anseios psicológicos, que podem ser conscientes ou não, influenciados por uma série de fatores de natureza individual, como valores morais, éticos, religiosos, hábitos, possibilidades, etc.

Fundamentando-se no comportamento mental padrão, que presumi uma pessoa normal e saudável, Freud elencou uma diversidade de instintos, mas direcionou sua atenção para o que ele chamou instintos básicos, constituídos de duas forças instintivas contrárias, a sexual, fisicamente gratificante, e a agressiva ou destrutiva, sendo que primeiro sustenta a vida e o segundo ocasionalmente pode levar a morte, geralmente atuando, na maioria das vezes, de forma subliminar, sem que se perceba, agindo sobre os pensamentos muitas vezes de forma conjunta. A primeira força ele atribuiu a atuação da “libido”, desejo em latin, a segunda não recebeu nenhuma nomenclatura especial.

Em consonância aos conceitos de consciente, pré-consciente e inconsciente, Freud propôs os três elementos básicos da pisque: o Id, o Ego e o Superego. Embora todos sejam importantes, o primordial na atuação dos instintos é o id, que é inato, abrangendo tudo que herdamos, é intrínseco ao ser e aos instintos, decorrem de seu próprio corpo e se manifestam psiquicamente através de sistemas incógnitos, constituindo a personalidade mais primitiva, natural do homem, sujeita as necessidades do corpo, do ego e do superego. Em suma o id abriga o inconsciente, seus sentimentos e desejos mais profundos repelidos pela consciência, ou nunca experimentados por ela.

O Ego corresponde a parte psíquica que interage com o mundo externo, derivado do Id, ele vai moldando a personalidade do ser a medida que este desenvolve sua “consciência”, sua noção do “eu”, aprendendo a controlar as manifestações do Id (pulsões), mantendo sanidade mental. Atuando como intermediário entre o real e o mental, cabe a ele associar as respostas físicas às informações captadas pelos sentidos, zelando pela integridade do ser enquanto criatura biológica vulnerável aos agentes externos e internos não só físicos, mas também psicológicos, filtrando os estímulos de natureza sensível, preparando-o para se integrar convenientemente a vida. Essa interação entre o Id e Ego, é fundamental para amenizar a manifestação dos instintos, racionalizando se a pulsão dever ser ou satisfeita e quando.

O último componente deste trio, o Superego como próprio nome indica está acima do Ego, ele age como árbitro mental julgando os pensamentos oriundos do Ego, onde segundo Freud ficam armazenados os valores morais, conceitos e condutas sociais cerceando os excessos da personalidade sob a atuação da consciência, da observação de si próprio em conformidade com as concepções que foram elaboradas no íntimo de cada um.  

Apesar de configurar-se como a manifestação da consciência individual e censor, o Superego pode também ser vitima da inconsciência, sucumbindo às compulsões que atuam na mente de forma indireta. Mesmo estando sujeito a algumas fragilidades o Superego enquanto estrutura da personalidade está menos suscetível as pulsões do Id (instintos) constituindo um elemento fundamental para reduzir as tensões decorrentes dele, sobretudo no que tange ao conceito das projeções, formadas a partir da manifestação inconsciente dos desejos sobre a percepção consciente, aludindo ao fato de que parte do comportamento humano pode ser acarretado por atitudes inconscientes.

Mesmo que muito do que Freud tenha dito não corresponda aos conceitos mais atuais da psicanálise, ele como um dos precursores desta ciência que abriu as portas da mente humana tentando revelar os seu mistérios, deixando um legado inquestionável sobre a manifestação dos instintos, apesar das contradições.

As observações sobre a psique humana são um assunto tão vasto que talvez seja impossível esgotá-lo completamente, talvez porque à medida que vão se desvelando os segredos da mente outros emergem a superfície reiniciando novamente o ciclo a partir deste. O que de fato tem sem observado na prática é a interação entre os princípios filosóficos, psicológicos e empíricos, trazendo aos pesquisadores uma nova ótica e resultados mais satisfatórios sobre o comportamento humano no que se refere aos instintos. Essa abordagem tentando esboçar minimamente esse aspecto do comportamento humano demonstra quão difícil é compreendê-lo. Se os estudiosos enfrentam desafios desta grandeza, imaginar a situação das pessoas comuns frente à manifestação dos instintos seria então uma covardia; mas é preciso encontra alguma forma de enfrentar sua ditadura, superar os obstáculos internos que levam a essa submissão inconsciente, deve-se lutar contra ela através do conhecimento de si mesmo sem que se precise apelar para os dogmatismos, conceitos e convenções inculcados pelas crenças e religiões, que percebendo a prevalência dos instintos sobre a razão, não demorou a criar mecanismos que pudessem sobrepujá-los, de que forma, associando a eles a vontade do divino, de um ente superior ao ser humano, dando a conotação de que o desrespeito a estas regras constituiria a desobediência a vontade do Criador, condenando o homem a sua incurável imperfeição, ao limbo da existência, descrente de sua própria capacidade de se superar e redimir.

Independentemente de como deverá se processar esse embate, o fato é, em função da racionalidade humana a prevalência da razão sobre os instintos é mais que uma obrigação, é a confirmação da condição humana de pensar, por que caso contrário, estar-se-ia assumindo outra condição, a de inferioridade perante o que há de mais primitivo existente no comportamento humano, quando deixar-se reger pela impulsividade consuma de forma irrevogável a situação “animalesca” a que se está submetido. A gravidade deste quadro se acentua quando se observa a consequência da atuação de suas manifestações mensurando seus resultados desastrosos. Não é difícil identificar na própria vida como podem ser devastadores os efeitos do instinto, não raramente, mergulhando sua vítima num quadro que pode ir muito além do simples arrependimento e da depressão ocasionados pela tomada de atitudes impensadas. A atuação dos instintos podem trazer comprometimentos jurídicos e eventualmente até a própria morte, exemplificada tantas vezes na tragédia que muitas brigas de trânsito se converteram para seus atores, tanto agentes, quanto vítimas, em que o saldo comum é que ambos os lados saem perdendo; tornaram-se presas fáceis do instinto.

É triste constatar que apesar de toda cientificidade sobre o assunto, grande parte dos seres humanos continua escrava de seus hormônios e necessidades físicas não vitais, permitindo que estes se sobressaiam sobre valores pessoais assumidos pública ou individualmente perante si mesmo, que deveriam balizar e nortear a conduta ética e moral humanas, traindo a si próprios, suas convicções e aqueles que confiaram. Acontecimento notório que desgraça muitas vidas que quiseram se aproveitar de um momento furtivo, instante esse que pouco ou quase nada agregaram a formação deste ser inconseqüente dos riscos a que se expôs.

Não se trata aqui da repressão deliberada aos instintos humanos, mas da importância que deve ser dada ao pensamento e a razão antes de entregar a manifestação deles. A autoridade da consciência é primordial para que se possa no mínimo almejar um domínio sobre eles, e essa obediência poderá ser obtida na medida em que cada um seja capaz de tornar-se senhor de si mesmo, de aprofundar-se dentro do “eu” individual, averiguando quem está no comando da situação, e a seu juízo fazer a escolha que julgar conveniente. Pelo ou menos, assim, não caberão justificativas para si mesmo.

O agir influenciado pelos instintos nivela o ser humano por baixo, levando-o a bestialidade, ao não pensar. É precipitado e imediatista, representado pelo querer puramente irracional, sem a substância ou o conteúdo da razoabilidade, sucumbindo a vontade primitiva, como um animal qualquer, neste aspecto ele é igualitário, destruindo a individualidade, remetendo o homem a vala comum da indiferença, que significa a perda do direito de escolha sobre seus atos, a subserviência cega as aspirações físicas e biológicas, confirmando a ausência de lucidez que se está imerso. Essa entrega perniciosa corrompe as estruturas mentais em prol de um comodismo que enfraquece o esforço de evolução e no mínimo engessa a racionalidade, sujeitando o ser humano a falta de civilidade que inviabiliza convívio social em certas ocasiões.

É preciso salientar que a liberdade de expressão e a espontaneidade em nada podem ser comparadas às manifestações do instinto. São coisas divergentes em suas origens e suas essências, não devem ser confundidas de maneira alguma, essa confusão consistiria no consentimento de que as coisas podem ocorrer ao bel prazer da inconsciência, esse comportamento mergulharia a sociedade humana numa anarquia regida pela bestialidade e pela força bruta, tornando-a escrava dos próprios instintos e ainda mais sujeita a barbárie que assola a humanidade periodicamente, tolhendo aquilo que o homem tem de mais nobre, a capacidade de pensar por si só. Controlar as pulsões e optar pelo caminho correto, o menos tortuoso, aquele que só se pode explorar quando é percorrido acompanhado da observação e da inteligência, que devem atuar de forma ampla e irrestrita, concede ao andarilho a possibilidade de reconhecer qual das alternativas é verdadeiramente boa, imputando a cada um a responsabilidade de suas próprias escolhas, feitas à luz da consciência e não somente sob a influência dos instintos.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Solidão



  Hoje vivemos num mundo tão “pequeno”, que não existem distancias maiores que aquela que separa a ponta dos  dedos das teclas de um computador, por outro lado, ou em conseqüência disso, o ser humano talvez nunca tenha estado tão desacompanhado do outro, que assim como o primeiro (ser), também pode ter se tornado vítima da mesma condição que assola a sociedade contemporânea. Embora este seja um assunto mais que em voga e que caibam sobre ele toda sorte de argumentos, discorrer sobre a solidão converte-se numa tarefa laboriosa quando se extrapola seu significado contemplando seus aspectos mais elevados, fugindo do ordinário, do significado comum, que normalmente a associa a dor e ao isolamento.

  As atribulações da vida moderna tem imposto a uma grande quantidade de pessoas certas circunstâncias da quais não podem fugir. Não é raro conhecer alguém que esteja nessa situação, freqüentemente até no seio familiar encontramos um parente incluído neste cenário, acostumados ao convívio social, os familiares tendem a lamentar a situação do próximo, mesmo que este tenha escolhido esta condição por vontade própria. Relacionar o sofrimento as pessoas solitárias é natural, faz parte do senso comum, contudo não que dizer que elas padeçam desta “infelicidade”, pelo contrário, muitos se glorificam por se encontrarem neste estado, que de certa forma concede a liberdade de agir sem ter que prestar satisfação a ninguém. Embora essa “liberdade” seja inerente aos que vivem sós, o preço que ela cobra pode ser bastante alto. Mesmo que a tecnologia brinde ao homem a possibilidade de se comunicar e até ver outras pessoas que podem estar a milhares de quilômetros de distância, ela não reparte as contas, não divide as tarefas do lar, não fornece um ombro amigo para encostar-se. Normalmente a solidão física sucumbe a primeira enfermidade, que seja apenas uma gripe mais forte, já é o suficiente para buscar ao próximo, até por prudência e sensatez. Quantas pessoas não deixaram este mundo precocemente vítimas de um mau súbito porque não tiveram quem os acudissem na hora. Infelizmente, a solidão aflige muitos seres maduros, que sob o peso dos anos acumulados, estão frágeis, muitos com a saúde comprometida, carecendo mais que nunca da companhia que conforta e assegura.

  O estar só é bastante relativo, quantas vezes um indivíduo se vê só no meio da multidão, quem nunca se perdeu dos pais, principalmente quando pequeno e mesmo estando em meio a outras pessoas experimentou o desespero da solidão momentânea, pior ainda quando ela é perene, potencializando a sensação de isolamento que se consuma no vazio, na falta da vontade de viver, quanto até mesmo “Deus” aparenta ser incapaz de preenchê-lo. Ao cético cabe então uma preocupação maior, apegar-se a quê ou a quem nessas horas, quando ele próprio já não é mais capaz de bastar-se, e a racionalidade não traz nenhuma resposta plausível, ter que resignar-se a certeza da miséria do que se é, meramente matéria humana viva, privando-se do alento da possibilidade de transcendência do espírito do homem.

A sapiência da natureza é notória. Pelos processos naturais, desde o acasalamento e a concepção dentro do útero materno que acolhe e protege a formação de um novo ser até o nascimento para vida, tem-se a companhia de alguém. Para alcançarmos a maturidade precisamos dos cuidados, do acompanhamento, do aprendizado dos mais velhos. Esse processo não ocorre por acaso. Que se saiba, ninguém sobrevive ou se faz sozinho, é necessário tempo para aprender a andar pelas próprias pernas antes de se aventurar pelo mundo e decidir sobre as escolhas que definirão os caminhos a serem seguidos. Optar pela solidão é um deles, embora algumas vezes a vida não deixe muitas alternativas, dificilmente ela privará alguém de encontrar outra pessoa, a menos que ela mesma não queira ou se permita a isso. Comentar sobre este assunto controverso é delicado, essa condição muitas vezes ocorre de forma inconsciente, oculta nos arcanos do psiquismo humano, em muitos casos mergulhando o ser na depressão, refletindo na dificuldade de se relacionar, na afetividade, no medo de amar, etc. Muitas vezes o isolamento de que se é vítima pode ser conseqüência dos critérios adotados para avaliar o outro, quando se é severo demais ou pouco tolerante, restringi-se a possibilidade de sucesso na busca por qualquer coisa, ainda mais quando essa coisa trata-se da cara metade. A simetria perfeita, exceto nos domínios da matemática, inexiste, o príncipe ou a princesa encantados são tão irreais quanto o encantamento que lhes é inerente. Trazer os pés à terra e procurar dentro de si mesmo, os conceitos que fundamentam essa postura, permite reavaliar as expectativas com relação ao outro, podendo facilitar o entendimento das causas para a solidão, esse pode ser bom um começo para aqueles que procuram vencer esta condição.

  Curiosamente essa situação configura uma contradição também habitual, aquele que se encontra acompanhado costuma lamentar a privação da liberdade que a solidão lhe concede e o que está só, reclama a ausência da companhia do parceiro, no entanto, o contrário é mais veemente e qualquer um que tenha experimentado a segunda condição tende a concordar com o fato.

  Dissociar o sofrimento, da solidão, como é entendido pelo senso comum é complicado, mas não impossível. Quantas vezes se almeja o estar só, traduzida na famosa expressão: “me deixa, quero ficar sozinho(a)”, que de tão corriqueira  não lhe é dada a relevância que merece. Tudo indica que os filósofos tenham percebido isso antes, talvez por exercitar mais profundamente sua faculdade pensar, vislumbraram a importância da solidão por outra ótica, aquela que repercute na conduta de si mesmo, compreendida pelo recolhimento a que se submetiam para tentar entender a si próprios, os outros e o mundo, que define o que é solitude.

  Contrariando os ditames da “Natureza” e as evidências evolutivas, o pensamento existencialista define a solidão como essência do humano, alegando que cada um vem ao mundo sozinho, passando pela vida como um ser em separado (um individuo, que é único, singular), e ao final da jornada morre sozinho, conformando-se a essa situação e aprendendo a partir dela como conduzir a vida. Essa concepção conflituosa confrontando a realidade dos fatos suscita alguns questionamentos, embora o existencialismo não se resuma a esta afirmação, cabe perguntar onde os filósofos dessa escola embasaram esta compreensão, talvez fosse fruto da solitude a que se submeteram, espelhando nos seus conceitos suas próprias vivências. Aparentemente esses aspectos não encontram uma correspondência palpável no mundo real. Essa orfandade ao longo do percurso da vida chega a ser cruel, e condenaria a existência humana a uma solidão permanente, tanto que outra vertente do existencialismo defende exatamente o oposto, onde os indivíduos devem se vincular uns aos outros formando um universo comum, em que criam e se comunicam, a solidão neste caso, constitui-se do sentimento de estar ausente a este universo. Uma ideia mais compatível a dependência e a vulnerabilidade humana.

  Arthur Schopenhauer (1788-1860) intitulou um texto com a seguinte frase: “Quem não ama a solidão, não ama a liberdade”, embora seja ácido em suas colocações, muito do que Schopenhauer afirma é procedente a luz da razão e demonstra como a solitude pode ser benéfica a construção do ser humano. Essa dedução pode estar ligada ao fato de que quando se está só, reservamo-nos a companhia do próprio “eu”, dos questionamentos, dos pensamentos e quiçá das compreensões. Esse ponto de vista é muito alentador, enxergar essa “solidão” como uma oportunidade para evoluir é de certa forma bastante estimulante. Nesses momentos em que se pode desvencilhar das aparências para ser pura e simplesmente o que se é, inteiro, incondicionalmente livre, que se deve aproveitar a ocasião para examinar as experiências únicas que cada um tem no transcorrer da vida, refletindo sobre as coisas boas e ruins que aconteceram, reconsiderando os fatos, construindo juízos que possam nortear a conduta individual para que ela aponte para o que há de mais nobre naquilo que ainda pode ser realizado, corrigindo injustiças, remediando os litígios e reatando laços rompidos.

  Esquivar-se da solidão física é mais que razoável, é saudável, bem pelo ou menos é o que comprova um estudo realizado pela Universidade de La Trobe na Austrália, que pesquisou cerca de dez mil mulheres e homens casados durante 15 anos e constatou que os casais vivem mais que os solteiros, principalmente no que tange ao universo masculino, mas essa abordagem bio-psico-social tem cunho meramente didático, servindo apenas como um alerta para aqueles que desejam viver sós. A solitude, porém consiste de um direito a privacidade, da vontade de ficar sozinho, essa reclusão é normalmente voluntária, muita vezes precisa-se dela para colocar as ideias em ordem, sem que isso configure algum suplício ou sofrimento, mas sim uma oportunidade para serenar a mente e avaliar os fatos de forma mais justa e imparcial, compreendendo melhor as causas e as consequências das nossas atitudes e as dos outros, tendo em foco que tudo isso colabora com a estabilidade emocional, tão necessária para si encontrar em paz.

  Estar sozinho ou acompanhado é tão questionável quanto o valor que se dá a condição de autonomia ou de sujeição que cada um destes termos encerra. Talvez não seja sempre, mas em grande parte das vezes constitui-se de uma escolha pessoal, portanto para finalizar este texto deixo duas citações populares que ensejam essa contradição, mas com apelos divergentes, um racional, o outro sentimental, fica a mercê das reflexões de cada um, aquela que melhor lhe convém.

“Antes só que mal acompanhado (a).” – Anônimo

“Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão.” – Vinicius de Moraes

Dedico este texto a minha irmã, que trouxe elementos do seu viver me incentivando a escrevê-lo.