domingo, 25 de novembro de 2012

A Mentira da Verdade


Certamente na busca pelo conhecimento de si mesmo o ser humano deverá confrontar a contradição intrínseca ao fato da negação da "verdade", este objeto cuja busca insaciável permeia toda sua existência. Essa diligência vem consumindo o fósforo de muitos pensadores, religiosos e pessoas comuns ao longo dos dias e noites de nossa conturbada história, precipitando na inquietude que tal tema suscita às mentes mais atentas. Seria muito fácil afirmar que a verdade e oposto da mentira e vice-versa, o conformismo albergado nessa questão talvez seja um dos piores inimigos da criatura humana ao longo de sua evolução. A parametrização da verdades contidas na tradição, tão nociva a liberdade, está de tal maneira entranhada na sociedade que quaisquer manifestações avessas a ela configuram a reação à verdade. Quem poderia afirmar que a verdade é de fato a exatamente a verdade? Quem ousaria atestar com segurança essa afirmação? Aparentemente muito poucos teriam estatura e seriam capazes de fazê-lo, mas a “realidade” é outra, muitos se arrogam donos da verdade, aliás, a verdade tornou-se uma “commodity”, um produto habilmente comercializado em um mercado ávido de revelações e maledicências. Esses estelionatários da verdade povoam todos os cenários das atividades humanas. Desde o seio da família, que inadvertidamente o faz, as empresas que vendem seus produtos maravilhosos, associando sua imagem à cultura do poder e do sucesso, os políticos com suas promessas irrealizáveis, as crenças com seus dogmatismos e redenções, afora um universo incontável de comerciantes da verdade que a colocam em destaque em suas vitrines.

É interessante observar que cada um, influenciado pelas imposturas, acaba sucumbindo ao “status quo”, tornando-se a sua maneira, vítima e agente de suas próprias convicções, iludido com as “realidades” fictícias que cada um é capaz de “imaginar” em relação a si próprio, construindo um mundo quimérico adequado a personalidade e às medidas de suas deficiências pessoais, ocultando as “verdades” inefáveis absconsas no íntimo de cada ser, refletidas na “mentira” da pretensa vida que se vive.

A teoria é linda, o mundo segundo a verdade seria perfeito, repleto de alegrias, paz e satisfações, o contrário da mentira, que mergulharia esse mundo na anarquia, na dor, no sofrimento, na discórdia, mas espere um pouco. Afinal em qual mundo se vive, no primeiro ou no segundo? Que perfeição é está? Tão inalcançável e intangível. Mesmo o mais míope dos fundamentalistas religiosos é capaz de perceber que o mundo da verdade, apregoado como caminho da salvação não existe, a humanidade está imersa num oceano de lama onde a dor e sofrimento são tão corriqueiros que se tornaram habituais. Então, este não é o  mundo da mentira? Aquele desprovido da glória da benevolente verdade. Onde está o erro? 

Talvez se careça de dados mais precisos, mas desde seus primórdios a civilização humana é “educada” para zelar pela verdade e repelir a mentira, uma conveniência social decorrente da necessidade de se colocar “ordem no caos”, afinal a estruturante verdade é necessária para alicerçar e tornar "possível" qualquer convivência humana, servindo de referência para a vida social e divisor de águas entre o bem e o mal.

Positivamente pensando, o conceito da verdade é fundamental para a manutenção de algumas premissas do estado de direito, o instrumento certo para balizar normas de conduta utilizadas para estabelecer limites as manifestações individuais, não permitindo que estas extrapolem para balburdia. Natualmente, essa regulamentação "ainda" é imprescindível parar tolher excessos doo comportamento do humano, tão sujeito as tentações “materialistas”, "espirituais" e “carnais”, que a sociedade da “verdade” incute em seu pensamento, algo que fatalmente se reflete na sua postura diante da vida. O incentivo a idolatria ao sucesso, ao poder e a riqueza, contraditoriamente, conduzem a criatura humana ao lado oposto, ao comodismo, ao desrespeito, a mentira, culminando, mesmo diante de todos esses esforços, no fracasso da essência íntima daqueles que se renderam ao dinheiro fácil, a trapaça, e a subversão.

Os meandros do comportamento humano são tantos e tão singulares que o homem se deu ao luxo de categorizar a verdade. Ora, se existe mais de uma verdade, qual seria a verdade? Para desesperadora pergunta temos pelo menos uma alternativa que poderia ser classificada como verdadeira, a “verdade científica” é de fato um retrato da realidade experimentada naquele momento, consumada pela ciência e pelo método que lhe são inerentes. Em tese, não importa onde, nem quando, se forem seguidos criteriosamente as mesmas condições e procedimentos, sempre se há de obter o mesmo resultado: palpável, constante, imutável, no entanto, tem-se que ressaltar uma característica do aspecto experimental, ou seja, a repetição da experiência ratifica a verdade posta à prova, filosoficamente falando, a verdade deve e tem que ser pragmática, subsidiada pela experiência. Por dedução, a verdade, neste caso, é fruto da experiência, da comprovação científica, se apresenta irrefutável, quando se trata realmente daquilo que foi testado, que no caso humano, poderia ser sentido ou vivenciado, desde que se considere que nem tudo que o homem experimenta pode ser comprovado cientificamente, porque se assim fosse, tão natural, tão simples, muitas pretensas verdades já teriam caído por terra, desmascaradas, transparecendo a falsidade e a mentira que ostentam. Não é a toa que muitas pessoas inquietas e eruditas acabem se convertendo em ateus ou céticos pessimistas, quem sabe, desiludidos pela falta de respostas plausíveis ou razoáveis as seus questionamentos.

A flexibilidade, é permeável, faculta ao homem a possibilidade da mudança, uma transigência imprescindível ao amadurecimento humano. A verdade como conseqüência do viver deve ser experimentada, e na medida do que se vive, incorporada a realidade de cada ser. O viver, é ele quem concede o direito universal de conhecer e reconhecer a verdade quando ela se apresenta. Neste cenário o contrário da verdade não é a mentira, a mentira transfigurou-se na credulidade, a propensão humana a crer, coisa que extrapola os limites da razão, ultrapassando a sensatez, indo além de o simples aceitar, conduz o crédulo a acreditar sem refletir ou criticar as verdades que lhe são apresentadas. Essas características são claramente observadas em qualquer mecanismo de manipulação de mentes, sempre haverá um detentor da verdade emblemática, outorgando-se o direito defender suas ideologias políticas, religiosas ou pessoais.

Manipular a realidade em prol dos interesses pessoais, institucionais, ideológicos ou corporativos é transformá-la em mentira envolta por uma carapaça de verdade. Os argumentos podem ser os mais variados, desde zelar pela moral e os bons costumes, até mesmo a manutenção da segurança pública. Desvirtuar a verdade é relativamente fácil, alterando o foco, iluminando alguns pontos e obscurecendo outros não tão gloriosos. No jogo político fica evidente essa prática nojenta do poder. Que o digam os derrotados em guerras, os perdedores serão os vilões e os mocinhos estão sempre do lado vencedor. A história humana está repleta desses exemplos. Manipuladas deste jeito muitas mentiras assumem o caráter da verdade, a veracidade não é relevante, muito menos clarificar a turbidez dessa água, que tantos bebem confiando na sua pureza. Neste jogo sempre existirão prioridades acima do conhecimento da verdade, em muitos casos a verdade se perdeu nos labirintos do tempo, mas na maioria das vezes inexiste a boa intenção de revelar a essência dos acontecimentos, por que arriscar-se perder as regalias e o poder de influência, conquistados e mantidos, em alguns casos, há milênios?

A manutenção da verdade é metafórica, normalmente os homens constroem leis que refletem às necessidades de seus governos e credos, amparando-as no alicerce da verdade. Não é difícil encontrar amostras desse fato, a cultura humana esta cheia de provérbios e frases de efeito, embora banais, pode-se citar, por exemplo: a “lei de causa e efeito”, ou seria a “lei do retorno”, ou “quem com fere com ferro será ferido”, não importa, os exemplos são vários e abundantes, comparativamente à exceção fica a cargo da terceira lei de Newton, a lei física da “ação e reação”, as demais fogem do escopo científico, e se representam de alguma forma a “verdade” fica o questionamento, se as leis “supremas ou universais” realmente funcionam, por que a vida humana é tão injusta? Porque pessoas notoriamente “boas”, que dedicaram ou dedicam sua existência a serviço do bem, não são afortunadas como outras, que ao contrário, não possuem uma “ficha limpa”, uma conduta digna, ilibada, melhor dizendo, politicamente correta? Para perguntas desse cunho sempre surgem respostas infames como: “faltou-lhes sorte”, ou piores ainda, “é a vontade de Deus”. São essas “verdades” que se apregoam pelos caminhos da vida? Certamente que não. Mas, há aqueles que se contentam com respostas evasivas, escravos que alimentam o fogo da caldeira que faz mover as engrenagens da ignorância e da mentira humana.

A verdade é conveniente, de qualquer ângulo que se observe, as relações sociais humanas contemplam a verdade, a verdade é sinônimo de honra, de palavra, questionar a verdade caracteriza a aversão a ela e tudo que representa, talvez por isso homem relute tanto em contestá-la. Culturamente a contestação pressupõe a repulsa a verdade, o medo do isolamento e do afastamento do círculo social aterrorizam o homem, significa auto-imputar-se todos os defeitos daqueles que são avessos à verdade e solidários da mentira. Esse pensamento inculcado na mente das pessoas desde a mais tenra idade pode surtir alguns efeitos positivos para favorecer a vida em sociedade, mas limita seus horizontes na busca pela verdade, restringindo suas opções e limitando suas escolhas. Como é sabido, a verdade pode ser dolorosa, então para poupar as pessoas da agonia e do sofrimento de conhecer a realidade dos fatos, altruisticamente as “instituições” evitam, por assim dizer, que sejam desvelados esses “segredos” potencialmente ameaçadores e destrutivos, omitindo a “indesejável” verdade.

Tão nobre é esse motivo que ele se tornou curiosamente e de forma unanime um “sentimento mundial” ancião, o desejo “elevado” de poupar o povo dessa tortura, dando-lhe “pão e circo”, deve surtir efeitos muitos eficazes na supressão da vontade natural de "busca" pela verdade, uma vez que a receita é antiga e continua fazendo sucesso. O que importa é entregar alguma verdade, mesmo que oca e sem substância, o ser humano se contenta com a ilusão de que teve acesso à verdade e deste modo, feliz, continua sua jornada errante em busca de seu paraíso, sendo conduzido por todo tipo de manipulações, vulnerável a certeza da consciência de quem pensa que tudo sabe. Mesmo sem nada saber a respeito do assunto em que acredita, o homem tende a convertê-lo num conceito, num padrão, algo em que se baseou subjetivamente, fundamentado apenas pelas suas convicções inabaláveis de que aquilo representa a verdade, mas como afirmar que se trata da verdade? Mesmo extrapolando para além da observação, do empirismo que permite experimentar, e os dos sentimentos, que embora sejam subjetivos são bastante “palpáveis”, retornamos ao começo, como se pode afirmar que isto ou aquilo é, ou foi real. Quando não se pode contextualizar a verdade nesses aspectos ela assume outro, que foge à realidade, adquirindo a característica de simbolismo, de metáfora, desqualificando-a de sua essência primordial, a de retratar fielmente qualquer coisa que seja: objetos, pessoas, histórias. Observar esse detalhe é indispensável quando se fala em verdade, a ausência dele permite diferenciar a verdade do dogma, ou seja, a princípio toda e qualquer afirmação é dogmática, a verdade não existe por si só, ela passa a existir ou se manifesta a partir do momento em que pôde ser comprovada, “sentida” ou experimentada, caso contrário é tão inverídica quanto uma mentira. Qualquer pessoa pode afirmar o que quiser, os palanques políticos são testemunhas, mas converter afirmações em verdades não é tão simples quanto falar, fazer promessas, ou contar histórias.

Muitas verdades são como lendas, sempre carecendo de uma comprovação, mas algumas tiveram suas formas buriladas e realçadas, ao longo do tempo foram assumindo um posto que não lhes pertencia inicialmente. Receberam a chancela, o Canon, de que precisavam para perenizar sua permanência no mundo humano, se tornaram estáveis, imunes as suas origens pagãs ou mundanas, assumiram outro “status” diante dos homens, aqueles que lhe conferiram o título da “verdade”, esquecidos da premissa acima, porém, nem as estrelas são eternas, e um dia essas “verdades” também perecerão.

A verdade e a mentira são tão inseparáveis quanto os dois lados de uma mesma moeda, e contraditoriamente quantos não se valem da mentira para alcançar a verdade. Ao longo da história humana são vários os casos de pessoas que se fizeram passar por outra para alcançar um objetivo, que poderia ser a boa verdade ou coisa pior. Quantas pessoas não se valeram ou ainda se valem desses artifícios para alcançar um amor, socializar-se, amenizar a situação de um parente gravemente enfermo, lançando mão da mentira. Aquele que nunca mentiu que atire a primeira pedra. É lógico que a mentira, não é algo para se propagar ou utilizar-se dela para benefícios espúrios. As chamadas “mentiras de pescador”, “inofensivas” são toleráveis, mas continuam sendo mentiras e, portanto, devem ser evitadas. Aparentemente fácil, evitar a mentira é dificílimo, principalmente quando se vive tutorado por ela. A grande maioria das convenções sociais humanas é forjada na mentira, inconsciente, o homem conformou-se com ela ao longo dos anos, acreditando tratar-se da “verdade”. Seduzido pela grande maioria, ele deixa-se levar pela corrente, submetendo-se as normas civis, políticas e religiosas ditadas pelas instituições, colocando-o no meio da sopa comum, que tudo generaliza, incutindo nele conceitos e linhas de conduta que se não extinguem, no mínimo sufocam sua individualidade, intuições e percepções a respeito do mundo a sua volta, porque é assim que ele se tornará “racional”, colocando-o num patamar acima do reino animal. Será? Como pode o homem, esse “animal racional”, assenhorar-se da verdade, e proclamar com certeza matemática sobre todos os assuntos que estão além de sua ciência incipiente? Desde quando, e de onde vem o conceito de céu e inferno? Quantos astronautas e exploradores de cavernas regressaram de suas incursões nos confins do espaço ou nas entranhas da terra, alegando ter encontrado Deus ou Satanás em suas moradas? Como são débeis e frágeis as verdades humanas, podem esfacelar-se diante dos questionamentos mais ingênuos, ainda assim, permanecem rijas como castelo construído sobre a rocha firme. Não há como negar o mérito, os arquitetos da verdade trabalharam e permanecem trabalhando bem, seus castelos de “cartas”, glorificando as falsas verdades. Sim, porque segundo eles a verdade é hermética, não está disponível em lugar algum, só poderá ser encontrada trilhando os caminhos que irão revelá-la aos seus súditos. É como o sucesso financeiro, colocado no degrau mais alto da escala “evolutiva” do homem, culto que tanto mal tem trazido à humanidade ao longo de sua história.

É admirável como os humanos são capazes de admitir a verdade não científica sem conhecê-la, senti-la ou experimentá-la, qual justificativa poderia explicar tal situação, como mensurar, qual o critério a ser adotado para afirmar que tal coisa se trata ou não da verdade? Essa dualidade demonstra a possibilidade do absurdo que paira sobre várias delas. Diga-se de passagem, o dito popular: “quem conta um conto, aumenta um ponto”. São muitos os casos em que a verdade é apenas um rascunho apagado de alguma história, uma representação opaca e pessoal de uma ou mais testemunhas que se esforçaram em narrar, cada uma ao seu modo, quiçá influenciadas pela imaginação, o quê ou aquilo que presenciaram. Essa transposição nebulosa dos fatos, associada ao tempo, dificilmente se aproximará da realidade. Desconsiderando que muitas verdades foram “traduzidas” para línguas totalmente estranhas as da origem do evento e por milhares de vezes. Sob essas circunstancias seria bastante natural e plausível que se questionasse a credibilidade de certas verdades. Comparativamente, é como acreditar na fala de um estranho que nunca se viu antes. Quem lhe garante a verdade? Ressalte-se que muitas são avalizadas por “Deus”, portanto, inquestionáveis. Essa notória contraposição entra as “verdades”, embora elucidativa e reveladora, põe em cheque a racionalidade humana. Ora, para quem já dispõe de alguma ciência, seria natural que as verdades não legitimadas pela experiência ou pelos conhecimentos científicos fossem postas a prova para teste. Daí surge o conflito entre a crença e a razão, que normalmente espelha as fraquezas e deficiências do comportamento humano daqueles que relutam em admitir a verdade perante sua própria razão, por mais racionais que pareçam, são incapazes de superar os conceitos e valores já admitidos. Despertar para realidade não é simples e requer esforço. Muitos se perguntam: para quê? Quando se pode continuar sonhando acordado, contemplando o eterno. É preferível deixar-se enganar que enfrentar a verdade, aprender a encarar o mundo de forma natural, sujeitando-se a dor desilusão e sendo obrigado a engolir o próprio orgulho. A crença que alimenta a esperança é melhor que destruir o encantamento dos mundos quiméricos e das utopias da salvação. Bem ou mal, várias pessoas pensam assim, a escolha é um direito que as assiste. O desprendimento é virtude necessária a todos aqueles que têm a audácia de querer conhecer e talvez alcançar alguma verdade, seja ela cientifica ou não.

A arrogância humana em torno da verdade é imbatível, a grande maioria das pessoas credita suas existências às benesses divinas, são incapazes de conceber que suas vidas podem ser meramente fruto do acaso e que se existe algum milagre em suas existência, este pode ser chamado “vida”. Admitir que o homem possa ser apenas carne e ossos, como fazem os ateus, consuma a negação do Criador e das verdades divinas, por outros lado, revelam a humildade perante as leis da Natureza, que para mesma maioria destes homens, está aqui para nos servir, considerando que homem é o centro do universo, imagem e semelhança do “Criador” que ele mesmo criou, portanto, este planeta é consequência do homem, que precisava de uma morada para criação divina, e não o contrário, quando analisados por esta ótica míope. Uma “verdade” muito conveniente para aqueles que se valem dela para justificar os maus tratos e a destruição do mundo a sua volta. Respeitar o espaço alheio é fundamental para que homem comece a entender sua própria verdade, está mais que comprovado que os métodos e técnicas de persuasão da verdade e da civilidade vêm falhando ao longo do tempo, não será fazendo parte do erro que o ser humano irá encontrar a verdade, uma vez que ela já esta posta à mesa, para ser degustada e apreciada pela razão e pelos sentimentos, que nada e nem ninguém virá aqui para revelar que o próprio “Deus” já revelou, que a tal “busca” está a menos de um passo de qualquer pessoa, e que para conseguir compreendê-la basta observar, refletir, perceber a verdade presente em cada movimento da vida. Ser livre para pensar por si só e edificar seus próprios conceitos, reformulando-os à medida que se vive. Agir de outro modo é como advogar para um assassino confesso, por mais elaborada que seja a defesa, o máximo que se poderá alcançar é uma redução da pena, mas o réu nunca estará isento da culpa de suas atitudes ou escolhas.

Será que ao ignorarmos as verdades presentes a nossa volta não estamos incorrendo no mesmo erro, advogando em causa própria, tentando encobrir os equívocos e preconceitos que admitimos como “verdades”, abrigando a mentira no seio de nossas vidas, ou pior, propagando as falsas verdades para aqueles que pela ingenuidade ou pela tenra idade se tornarão futuras vítimas de um sistema servil, que desde sempre vem fazendo uso da mentira transfigurada em verdade. Neste caso, somos todos advogados, réus e juízes, caberá a cada um ditar sua própria sentença, acatando as “verdades” que lhe pareceram mais convincentes.

Segue abaixo texto de autoria de Rui Barbosa especulando sobre a mentira.

"Mentira toda ela. Mentira de tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu, onde, segundo o Padre Vieira, que não chegou a conhecer o Dr. Urbano dos Santos, o próprio sol mentia ao Maranhão, e diríeis que hoje mente ao Brasil inteiro. Mentira nos protestos. Mentira nas promessas. Mentira nos programas. Mentira nos projetos. Mentira nos progressos. Mentira nas reformas. Mentiras nas convicções. Mentira nas transmutações. Mentira nas soluções. Mentira nos homens, nos atos e nas coisas. Mentira no rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Mentira nos partidos, nas coligações e nos blocos. Mentira dos caudilhos aos seus apaniguados, mentira dos seus apaniguados aos caudilhos, mentira de caudilhos e apaniguados à nação. Mentira nas instituições. Mentira nas eleições. Mentira nas apurações. Mentira nas mensagens. Mentira nos relatórios. Mentira nos inquéritos. Mentira nos concursos. Mentira nas embaixadas. Mentira nas candidaturas. Mentira nas responsabilidades. Mentira nos desmentidos. A mentira geral. O monopólio da mentira. Uma impregnação tal das consciências pela mentira, que se acaba por se não discernir a mentira da verdade, que os contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes, ao cabo, muitas vezes não sabem se estão, ou não estão mentindo. Um ambiente, em suma, de mentiraria, que, depois de ter iludido ou desesperado os contemporâneos, corre o risco de lograr ou desesperar os vindoiros, a posteridade, a história, no exame de uma época, em que, à força de se intrujarem uns aos outros, os políticos, afinal, se encontram burlados pelas suas próprias burlas, e colhidos nas malhas da sua própria intrujice, como é precisamente agora o caso."
Associação Comercial do Rio de Janeiro
Obras Completas de Rui Barbosa. 
V. 46, t. 1, 1919. p. 31
Descritores: Mentira

Observações: Trecho da conferência "Às Classes Conservadoras". Autógrafo no Arquivo da FCRB.



terça-feira, 6 de novembro de 2012

O Revolucionário


Não é de hoje que as doutrinas, seitas e religiões, prometem a redenção aos seus fiéis, as promessas sempre se amparam nas regras de conduta que cada uma impõe aos seus seguidores, amaldiçoando todos aqueles que lhes dão as costas, condenando seus “Judas” ao calvário que estes mesmos já se encontram; seja o inferno ignorância, o purgatório do temor ou no umbral da credulidade.

Por melhor que sejam as intenções e por mais que os embusteiros se justifiquem com velhos ditos populares como:”dos males o menor” ou “é um mal necessário”, o significado do vernáculo é claro quando afirma que o mal se opõe ao bem, desviando do que é honesto e “moral”, infelizmentea morbidez dessas frases passa desapercebida pela maioria, até mesmo pelos mais eruditos e espertos, insensíveis a calamidade do que representam, dada sua popularidade e sua aspecto inofensivo. A impostura é doença epidêmica e reinante no mundo humano desde que algumas pessoas mais astutas, perceberam que uma boa oratória e um documento bem redigido poderiam exercer um poder quase ilimitado sobre os demais, utilizando-se do direito auto-arbitrado de proprietário de pretensas verdades divinas, os mensageiros da boa nova, mentores da nova ordem social, da cultura do amor e da salvação do espírito, se espalharam pelos povos do mundo como uma epidemia, muito mais devastadores que os ingênuos “xamãs” e pajés da alvorada de nossa civilização.

Tão bem engendradas são as artimanhas dos manipuladores de “mentes”, que se resguardaram da dúvida, atribuindo ao poder de intervenções miraculosas os mecanismos que utilizaram para alcançar as bênçãos dos entes superiores que lhes confiaram os segredos e ritos sagrados, um privilégio notoriamente dado somente aos “escolhidos”, seres especiais que estão acima das pessoas comuns, portadores do conhecimento dos “deuses”. Curiosamente esses profetas, que gozaram das benesses divinas, guias da bem-aventurança, em sua bondade ilimitada prometem a realização do quase intangível, da supremacia da verdade e da razão, alegando que os instintos bestiais e as limitações impostas pelo seu corpo físico poderão ser superados pelas revelações de seus espíritos, livres das fraquezas humanas. Esse processo de ascensão espiritual deve ser realmente algo muito complexo para que maioria dos seres humanos realize, afinal, quantos fiéis ou seguidores alcançaram tal iluminação, que se tenha notícia...

A inquietude que estas questões suscitam reside no fato de que se o espírito não corresponde ao homem do corpo que ele vivifica o que se é então, um rascunho, um arremedo de projeto espiritual que habita uma criatura humana buscando redimir-se dos erros de vidas passadas, almejando a evolução e a consciência do que realmente se é, ou seria esta mais uma trapaça que alimenta a esperança dos imprevidentes na busca do conhecimento de si mesmos.

Ora, se não se pode ser o que se é, cabe perguntar, como ficam todos aqueles que estudam o para-psiquismo humano, projetores astrais ou “consciênciais”, e os seguidores do espiritismo, tão criticados e desrespeitados por outras linhas doutrinárias, que alegam ser capazes de desdobrar-se e desvinculados de seu corpo físico, poder ir além de suas limitações carnais. Existem também outros fenômenos, que contam inclusive com o aporte da ciência médica, como é o caso daqueles que experimentaram experiências de quase morte, além do coma profundo, declarados biologicamente mortos, mas, que por algum motivo “voltaram”. Considerando que tais procedimentos poderiam realmente permitir alcançar o mundo etéreo, seria natural que muitos regressassem cheios de mensagens divinas, novos messias da humanidade, felizardos que puderam conhecer a verdade. Frustrante, mas normalmente não é o que acontece, quando “voltam”, são o que sempre foram, pessoas normais, alguns narram histórias de sensações de paz e felicidade ilimitadas, no máximo, lugares astrais. Então onde está o erro, todos são indignos das verdades celestiais, direito reservado somente aos profetas. De fato, a veracidade dessas histórias é incomprovável, no entanto, os fenômenos extraordinários ou inexplicáveis padecem da mesma falta de provas que as verdades doutrinárias ou dogmáticas. Na grande maioria das vezes são uma coleção de pensamentos humanos colocados a serviço da vaidade de querer posterizar-se além da morte, de interesses materialistas particulares de alguém ou de mais uma forma de doutrinação qualquer.

Mercadores de esperanças se espalham pelo mundo como gafanhotos sobre a lavoura indefesa, propagando que seus ensinamentos espelham a vontade do criador. Certamente ninguém é obrigado a segui-los, a todos é dado o direito de escolha, o livre arbítrio. Será mesmo? Os pais, muitas vezes contaminados pela moléstia da crença, induzem seus descendentes, mesmo que sem querer, a acreditar naquilo que elegeram como verdade, inconscientes de si mesmos e do prejuízo que podem causar aos próprios filhos, tolhendo mais que a liberdade de escolha, incentivando-os a seguir o mesmo caminho, repetindo o erro que lhes fora imposto, educando-os para se adequar aos parâmetros morais e sociais para que foram adestrados.

O conhecimento unilateral, tendencioso e parcial, fundamentado na clássica base maniqueísta, em geral, não leva a lugar algum, traz somente respostas prontas, ao contrário, o conhecimento deve ser plural, buscado e perseguido, não cai como “Manah” dos céus, obtê-lo permiti ao peregrino encontrar de forma isenta, lúcida e transparente, a verdade; coisa  que muitos relutam em enxergar para não ter que admitir para si mesmos a própria fragilidade de suas convicções, para não confrontar suas crenças, fundamentadas não no livre pensar, mas em um molde invisível, porém palpável, que os tornam sectários de uma forma pensar que não aflorou de suas vivências pessoais ou do mundo interno de suas mentes, mas sim de ensinamentos de uma linha doutrinária, do pensamento alheio que passaram a acolher como verdade, ignorando sua condição de crentes, venerando aquele que acreditam ser o portador da verdade.

O pensamento puro nascido no âmago do sentir e do pensar é praticamente um Nirvana. Como ser senhor dos próprios pensamentos ignorando todo tipo de influências benéficas ou nefastas que acercam o homem todos os dias de seu viver? Sinceramente, essa é uma resposta difícil de encontrar, e se alguém a encontrou reteve para si tal descoberta. A mente misteriosa mente humana onde a calmaria repentinamente cede lugar a turbulência faz transparecer a “persona” daqueles que buscam sua individualidade, é capaz de traí-los de forma tão eloquente que se torna admirável não perceberem a assinatura dessa confissão de culpa diante de si próprios perante tal manifestação.

Alguns seres inconformados com a trajetória errante dos homens, talvez sem querer, começam a instigar outros semelhantes a questionar a situação que se encontram, não raramente andando em círculos, sem sair do lugar, iludidos de que estão "evoluindo", ouvindo sempre a mesma retórica, aquela, que caracteriza qualquer processo doutrinador, impondo limites a manifestação das compreensões individuais, acautelando-se, restringindo a literatura que pode pesquisar como se todo resto se tratasse de livros apócrifos, que não atendem ao cânon desta ou daquela linha doutrinária, resvalando sempre na mesma justificativa de que e preciso macerar infinitamente o bagaço para extrair até a ultima gota do mosto, quando muitos poderiam expandir seus horizontes se si permitissem a conhecer mais de si mesmos, quebrando paradigmas e censuras internas, percebendo que o mundo a sua volta vai muito além de um punhado de livros que sacralizaram com se fossem o resumo da verdade. Abandonar essa dieta nociva que limita a percepção dos gostos e veda a oportunidade de experimentar outros sabores mais palatáveis e compensadores, favorece a busca por si mesmo e ajuda a encontrar respostas mais sensatas e balizadas nas experiências únicas de cada um.

Quais são as circunstâncias que levam as pessoas a abraçar certas causas e reagir ao “status quo”? Pessoas que mesmo sem querer acabam transformando-se num farol em alto mar, passando a orientar o caminho de muitos barcos errantes que tentam chegar ao seu destino em meio à tempestade, poupando-lhes do desastre de colidir em uma rocha fria, inerte, que silenciosamente aguarda que os incautos dêem com seus cascos frágeis na crista de seus arrecifes, encantados pelo suave coro das sereias que exibem sua beleza, mas escondem a intenção perversa de tanta doçura. A vida está cheia de sereias, alguns marujos mais calejados, sabedores dos riscos do oceano da existência, dificilmente cairão na mesma tentação dos cânticos sirénios, querendo de bom coração evitar que tal aflição se abata sobre outros navegantes. Ainda assim muitos navegadores, indubitavelmente cultos, conhecedores de outros mares, resistem em aceitar os fatos que se apresentam evidentes aos seus olhos, talvez por medo, insegurança, conforto, sabem-se lá os motivos que levam pessoas inteligentes maquiavelicamente persistirem na mesma cruzada insensata.

Que pensamentos norteiam certos comportamentos humanos alimentando-os da volúvel certeza de se estar fazendo o bem. O que poderia ser realmente o bem? Os “proselitistas” crêem que o fazem ao tentar convencer outros de que a redenção só pode ser alcançada, através do seu caminho, orientados pelo seu mestre, o mensageiro que trouxe os segredos da salvação. Essa conversa antiga, utilizada pelas doutrinas e religiões desde os tempos mais remotos, que pressupõe resignar-se a um mestre não é nenhuma novidade. Aos crédulos nunca faltarão mestres para seguir, a epifania tornou-se abundante e viceja em todos os lugares para onde se mire o olhar. Qualquer um pode arrogar-se guru ou profeta da verdade, espertos que perambulam por este mundo levando a “sabedoria” aos pobres tolos, que despercebidos da armadilha regozijam-se felizes, clamando aos quatro ventos que encontraram um caminho para verdade, ignorando que a verdade talvez já faça parte caminhada de cada um.

Chega a ser aviltante, a cobrança que algumas doutrinas fazem da gratidão para com seus mestres, quando nem mesmo Deus cobraria tanto. Uma postura autocrática que banaliza o significado da palavra, desvirtuando a magnitude de sua essência. Que cegueira mental faz com que os seguidores sejam levados proclamar infinitamente uma gratidão a outro, tão humano e deficiente quanto ele? Que nuances sobressaem nessa conduta? Demonstrar publicamente que se é grato, denotar a submissão ao seu mestre. Ora, qualquer cidadão por mais rude que seja sabe que a gratidão é um agradecimento que decorre de um sentimento interno espontâneo, não precisa ser propalado a toda hora. Bons filhos são gratos aos bons pais pelo presente da vida que receberam, no entanto, não precisam falar-lhes isto todos os dias, eles já sabem, esta virtude é refletida na própria conduta. Todo tipo de bajulação soa eminentemente falsa, pedante e artificial, revelando uma postura que se deva cumprir em subserviência a alguém, transparecendo nas entrelinhas a vaidade e a soberba, em contradição a humildade que deveria ser cultivada, sem que se precisasse reafirmar enfadonhamente isso, assemelhando-se a uma lavagem cerebral, onde mentes mais sugestionáveis sucumbem ao ritual.

Rechaçar o fanatismo é outro “clichê” comumente encontrado nesses ambientes, atirando contra o próprio pé, comprovam que ele está mais vivo e presente do que se imagina, mesmo que queiram fazer acreditar que ali se estaria livre dele. Ledo engano, nestes locais ele encontra alento e abrigo, desenvolvendo-se rapidamente e de forma ávida contamina aqueles que se achavam imunes a ele, seguros que não fazem parte desse grupo de desafortunados.

Pode-se querer ignorar que não exista um mundo perfeito, mas ainda assim todos se encontram inseridos nele, querendo ou não. Mesmo que se almeje criá-lo, iludindo as pessoas como se estas fossem da elite intelectual ou de uma outra “casta”, mais selecionada e evoluída, proclamando-se superior, denota uma condição lamentável, a daqueles que cegamente convictos se consideram mais capazes que os outros, desnudando para os demais a ignorância de tudo que os cerca, enclausurados na redoma mental que alija seus prisioneiros da convivência comum, simples, humana. Sem saber, esses pobres miseráveis cultivam o preconceito e a intolerância, a arrogância e o desprezo pelo alheio, discriminando o que é diferente, e convenientemente ridicularizando o que não conseguem compreender, simplesmente por que aquilo não converge com sua forma de pensar.

Infelizmente para estes seres o mundo esta cheio de fariseus, revolucionários que ousaram discordar e levantar durante o sermão para mostrar aos outros que qualquer coisa é passível de mudanças, mesmo aquelas que para muitos não podem ser maculadas. Para qualquer doutrina, seita ou religião, aqueles que tiveram a petulância de se rebelar aos ensinamentos foram demonizados, excomungados, banidos e execrados.

É curioso observar como atua a consciência humana, perceber a dificuldade em alcançá-la seria um bom começo, constatando a própria inconsciência, voltando-se para dentro de si mesmo para tentar superar, cada um ao seu tempo, suas deficiências e propensões, zelando pela imagem que deve estampar, demonstrando para quem nos acerca uma conduta mais louvável.

Pensar nas conseqüências das atitudes não é tarefa fácil, é como atear fogo sobre o mato seco, que se alastra rápido ao sabor do vento, foge aos limites do aceiro, queimando mais do que deveria, chamuscando a si próprio. Mas o fogo que destrói, também purifica, queimando a utopia e a ilusão da um mundo perfeito, alertando a razão que se é falho. Esse fogaréu que se consuma na observação atenciosa do que se vive, modifica a paisagem dos conceitos e valores antes ajuizados, faz brotar das cinzas outros mais novos e adequados a percepção da realidade. São testemunhos pessoais vivos de que se pode evoluir e mudar algo que está errado, encorajando aqueles a sua volta a saírem da inércia que se encontram para que tomar uma atitude em prol de si mesmos, escapando dessa complacente, perniciosa e demasiadamente homogênea, mesa de confrades, que sufoca, desestimula, enfraquece a força de vontade inata em cada ser.

Talvez um dia a humanidade se livre do “mal necessário”, lembrando que não é preciso aguardar pelo futuro, basta olhar o passado recente para identificar dos absurdos cometidos para que “fosse feita vossa vontade”. Não importa o credo ou viés ideológico que se siga, brindado pela inteligência, o homem pode, se quiser, separar o joio do trigo, resgatando desse conhecimento, tudo que há de bom. Sempre haverá esperança enquanto existirem pessoas despertas e atentas, observadores revolucionários dispostos a mudar o mundo para melhor, desafiando toda sorte de preconceitos, crendices e fanatismos, convictos de que se não tentarmos, permaneceremos eternamente estagnados acalentando o sonho de uma evolução improvável. 


Dedico este texto a um conhecido que inspirou-me pelo exemplo de sua persistência em querer melhorar algo.