sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Lealdade



No universo das virtudes humanas, existem algumas palavras discretas, que são pouco lembradas ou comentadas, a palavra lealdade talvez seja uma delas. Alguns dicionários a colocam como sinônimo de fidelidade, será mesmo? O fato é que a lealdade parece abarcar um significado mais amplo, algo mais abrangente e controverso; uma palavra que embute a insegurança da opinião parcial daquele que observa a cena de dentro do cenário e a ótica distante da plateia, que não é capaz de compreender todo enredo até o desfecho da trama, mas que ao final pode elaborar seu julgamento a partir do que foi observado.

É interessante ressaltar que está palavra, sabe-se lá por qual motivo, ficou aparentemente imune às influências dos conceitos morais, religiosos, sociais e políticos que ditam o “bom” comportamento do homem, tanto é verdade, que os dicionários trazem em suas definições sobre a palavra lealdade, coisas do tipo:

Qualidade, ação ou procedimento de quem é leal;

Sincero, franco e honesto. Fiel aos seus compromissos

Existem muitas outras definições, mas para resumir, pode-se afirmar que lealdade é possuir honestidade, franqueza, sinceridade; enquanto o termo fidelidade exprime a exatidão em cumprir suas obrigações, em “pagar” suas promessas.

Ao contrário da lealdade, a fidelidade não teve a mesma sorte, a sacralização dessa palavra a converteu num ícone, banalizando a essência de seu significado e dando outra conotação ao vernáculo, ela tornou-se um instrumento de doutrinação, sendo empregada a todo o momento para lembrar, por exemplo, que a “fidelidade” ao Criador deve ser incondicional, impondo aos “fiéis” uma “verdade” que eles devem obedecer cega e “fielmente”, sem questionar a natureza daqueles mandamentos forjados no fogo da manipulação dogmática, do temor e do castigo celestial. O conhecimento, a vontade, o pensamento próprio e a liberdade, são uma ameaça a fidelidade, como parecem afirmar alguns que se arrogam estar acima das pessoas comuns, gabando-se de sua fidelidade ao “verbo”, proferindo sermões aos demais, do alto de sua “sabedoria”, como se ali estivessem manifestando a vontade de Deus diante dos olhos dos crédulos,que incautos à ameaça que os cerca, aceitam conformados a sua condição inferior, aprisionados pela teia da ignorância de si mesmos.

Mesmo que tudo indique que estes significados reflitam a compreensão dessas palavras no conceito comum, ordinário, podendo-se dizer, politicamente “correto”, há, no entanto, uma evidente associação entre lealdade e fidelidade, apesar disso é possível destacar algumas particularidades, a lealdade expressa de forma mais eloquente a cumplicidade, a amizade, é um pré-requisito para a outra, enquanto a fidelidade está mais relacionada ao comprometimento, fato que de certa forma restringi a aplicação do termo ao compromisso assumido, aquele que se submete em função de alguém ou de alguma coisa, é configurado numa relação de confiança, de mutualidade, que determina a qualquer um que se diz fiel, seja lá ao que for, a necessidade obrigatória de seguir uma determinada linha de conduta política, religiosa, ideológica, e que cuja pena em caso de desvio, caracteriza a mácula da traição, da infidelidade aos conceitos que anteriormente se admitiu. Poder-se-ia insinuar que a lealdade exprime uma qualidade que se dá por opção, de forma natural e a fidelidade como se resultasse de uma restrição, uma imposição.

A lealdade transparece um aspecto mais fluido, profundo e espontâneo, fato que não a isenta de também poder estar ligada a correntes doutrinárias, políticas ou ideológicas, porém como assinalado acima, essa conotação aparenta ser mais branda ou menos contundente.

Especular sobre este tema suscita tantas reflexões que é praticamente impossível não extrapolar o assunto para o legado cultural de que temos sido vitimas ao longo dos anos e que por tanto tempo vem sendo inculcado na mente dos mais novos, submetendo-os a toda sorte de preconceitos e regras de conduta que convergem com os ditames sociais e religiosos. Resiste a esperança de que essa linha comportamental venha perder força ao longo tempo, graças ao acesso ao estudo, o conhecimento e a cultura que libertam a mente desses paradigmas doutrinários e tabus. Não é segredo algum que ainda hoje exista entre os jovens um certo culto em torno da virgindade, aludindo a castidade daquela mulher que paradoxalmente foi mãe, sem nunca ter amado um homem, sendo inseminada pela providência divina, expressando o clímax da fidelidade que se presta ao Criador, como ainda fazem muitas mulheres que se entregam a vida eclesiástica.

Há também o preconceito machista de alguns homens que se vangloriam desta escolha feminina, “companheiros” de esposas que se pouparam para o “homem de suas vidas“, muitas vezes abrindo mão da própria felicidade, uma vez que pouca referência tem para elaboração de algum juízo de valor sobre o amor dado por aquele homem a quem chamam de marido, que em muitos casos não retribuem a conduta recatada de suas parceiras, ignorando o sacrifício que lhes foi oferecido, refletindo além da infidelidade conjugal, a deslealdade e a ingratidão, em nome de sua questionável virilidade masculina, muitas vezes regida simplesmente pelo instinto.

Claro que esta discussão que nos inquieta desde os primórdios da história humana tem suas peculiaridades, é interessante observar que embora seja contraditório, a lealdade e a fidelidade não são inseparáveis ou complementares como parece, uma coisa não está condicionada a outra, seria muita ousadia dizer que um casal pode ser leal e infiel ao mesmo tempo? A primeira vista parece que sim, mas ao se observar os relacionamentos ditos “modernos”, ou aqueles chamados “abertos”, “liberais”, a ótica sobre o assunto muda de ângulo. O tal “swing” ou troca de parceiros, é a infidelidade consentida e participada de cada membro deste relacionamento, em que houve um consenso anterior onde ambos concordaram com as regras do jogo, portanto, se foi pactuado, não houve traição. Neste caso, a infidelidade não está desassistida da lealdade, afinal, poder-se assumir que deslealdade ou ser desleal consiste em fazer algo escuso, sem o aval ou consentimento moral do outro, uma dedução simples, mas que traz a reboque a lógica que lhe é inerente, desmistificando a sagrada fidelidade e desvencilhando-a da lealdade.

Outro aspecto relevante que paira sobre a distorção do significado de fidelidade é aquele que incute sobre esta palavra a ideia do egoísmo, algo que é comparável ao vínculo que se faz a um juramento ou uma promessa. Os seres humanos tem uma inclinação natural a querer “possuir” coisas além daquilo que chamamos material, não é raro observar que o ato de possuir extrapola do objeto para a pessoa amada, “beltrano é meu”, “fulana é minha”, em resumo, na vida a dois, por mais que um queira pertencer ao outro, essa conduta possessiva e exclusivista adquire um contorno materialista, o do direito de propriedade; neste comentário não está se aludindo ao adultério ou coisa parecida, mas sim ao que interessa, a divergência entre a fidelidade e a lealdade. Não é difícil perceber que na vida de um casal, independentemente se terceiros são ou não bem vindos, que existe uma discordância  entre o “eu” e o “nós”, “meu” e “seu”; a fidelidade não embute em seu significado esta abrangência sobre a cumplicidade do sentir e do pensar que devem reger uma relação sadia entre duas (ou mais)* pessoas. Num relacionamento saudável ninguém precisa concordar sempre com o outro ou baixar a cabeça às vontades de um dos lados, que o digam as mulheres, notoriamente, algumas ainda são vítimas, subjugadas a força a este tipo de situação. A lealdade não cobra do parceiro a obrigação do compromisso assumido, como evidencia a fidelidade, ao contrário, está balizada no equilíbrio, na sensatez, na vontade de querer o melhor para sua cara metade, ela é celebrada quando ambos alcançam o objetivo juntos, de forma serena, tranquila, sempre respeitando os limites do outro e os valores celebrados entre eles.

* A palavra fidelidade é de certa forma exclusiva, no âmbito familiar seu uso se limita praticamente ao casal, excluindo os filhos e parentes de merecedores dessa qualidade, no entanto, a lealdade não. Qualquer pai, mãe, filho ou parente podem ser leais entre si, e embora não seja usual, também fiéis às pessoas e aos princípios morais que norteiam as boas atitudes no convívio familiar e social.

Uma pessoa leal constrói dentro de si uma base sólida de valores e conceitos éticos que a tornam em primeiro lugar fiel a si mesma, as suas ideias e convicções, mantendo-a sempre aprumada, consciente de que a traição principia internamente, no pensar e no sentir, dentro de cada um, local em que suas consequências podem ser contidas, resguardadas do mundo real, portanto menos danosas. Submeter-se a essa provação faz parte da vida, gratificando o ser humano de que ele é capaz de superar seus instintos e deficiências. A tarefa pode ser árdua, mas não é impossível, desde que se queira vencer o comodismo e a superestimação, aproveitando o teste para averiguar a quantas anda o nível de racionalidade e como está o domínio sobre a impulsividade. Tudo isso faz rememorar que embora homem não seja perfeito, não deve se entregar passivamente para as fraquezas que o assolam e descambar para a libertinagem. A exteriorização destes pensamentos e sentimentos materializa a traição, a falta de lealdade com si mesmo e com os valores que num certo momento se acatou livremente por opção, convicto de que se tratava da melhor escolha. Essas atitudes muitas vezes impensadas configuram o desprezo pela confiança concedida e demonstram a ruína da própria dignidade, é olhar para o espelho e ver refletida a fraqueza do caráter, a falsidade, a falta de comprometimento com aqueles que acreditaram em alguém que não merece o respeito que recebe, para aqueles que possuem alguma consciência, é relembrar que se é desleal.

Lealdade e fidelidade. Duas palavras complexas e controversas, principalmente fidelidade, a quem estão associados uma variedade de aspectos culturais que influenciam sua interpretação de acordo com as convenções sociais e religiosas locais, enfatiza que não importa como elas serão empregadas, o que importa é compreender seus significados e se possível, colocá-los em prática. Ser leal é simples, é guardar um segredo, estender a mão que acode, ser discreto e educado, resumindo, basta fazer o bem, é suficiente. Qualquer conduta de bem, provavelmente, levará a fidelidade aos bons princípios a culminar nela própria, como consequência de uma postura leal.