Talvez jamais saibamos
responder um questionamento tão presente quanto a própria existência humana, o
quê ou quem somos nós? Desde que a capacidade de raciocinar permitiu aos homens
formular perguntas sobre si mesmo, essa pergunta deve ser, sem dúvida, uma das
mais constantes. A criatura humana por seu caráter bio-psico- espirutual, busca
incessantemente por respostas, persiste ante a frustração de receber respostas
vagas, carentes do respaldo lógico e científico que justifiquem a existência do
espírito do homem com uma explicação plausível, laica, desprovida das verdades
dogmáticas que muito pouco acrescentam ao crescimento intelectual do homem,
subsídio mínimo necessário para concepção de um juízo sensato sobre esse
assunto. As respostas prontas, “reveladas”, fundamentadas na duvidosa revelação
do divino, trazem consigo além do conformismo de aceitar que as coisas “são
assim”, o convite a internar-se num universo ideológico moldado para doutrinar
o pensamento humano, cerceando a liberdade mais íntima que a Natureza lhe proveu,
a de ser livre para fazer suas próprias escolhas, “conscientemente”,
construindo sua individualidade baseada nas vivências pessoais, porém de forma
isenta, sem vícios ou alienações de qualquer ordem, contrariando o que geralmente
acontece, buscando sempre calcar respostas sobre o inexplicável, respaldadas pelos
ensinamentos sagrados transmitidos por algum ser “irrefutavelmente” superior, cuja
própria e controversa definição o reduz a mediocridade da “imagem e semelhança”
do homem. Esta definição aviltante para com o Altíssimo, embora careça de
substância e razoabilidade, lança sobre a humanidade uma centelha de esperança
em sua possibilidade de redenção, associando-a a “essência divina” de sua
criação, que sugere, consequentemente, uma pergunta: como pode ser o homem,
diminuto, composto por matéria, a imagem e semelhança de um ser presumidamente
imaterial, tão onipotente, que é capaz de abarcar o todo universo? Não que se
esteja pondo em xeque a existência Dele, mas é uma indagação natural quanto à
“revelação”, se analisada as vistas do raciocínio e da sensatez.
Cientificamente
falando, o quê é um ser humano? Um amontoado de células que se arranjaram num
organismo capaz de pensar. Por mais simplista e desalentadora que seja esta
definição, nela existe uma verdade incontestável daquilo que realmente é o
homem, pelo ou menos aos olhos da ciência em uma visão macroscópica; um animal
inteligente. Mas nem tudo são espinhos nesse jardim, brindado com a capacidade
de pensar, o homem pôde ir além dos instintos, mesmo se submetendo às restrições
que o corpo físico lhe impõe, ele pode ponderar antes de agir, ou seja, pensar,
agir “conscientemente” antes de tomar suas atitudes. Essa faculdade humana possibilita
na grande maioria dos casos a probabilidade de prever as conseqüências de um
ato ou atitude antes que sejam executados. Muito mais que uma vantagem
biológica, permite ao homem construir coisas e alterar o ambiente que o cerca, concedendo-lhe
uma prerrogativa exclusivamente humana, o direito de escolher seu destino
enquanto criatura única, indivisível, pessoal; direcionando suas energias para os
objetivos de sua “vida”, que podem ser bons ou maus. Talvez dentre esses
“objetivos de vida” reside uma questão crucial para encontrar a essência que
cada um quer para si, aquele constituído pela soma dos valores que se pôde amigalhar
ao longo do percurso da própria existência, que auxiliados pela educação,
moral, bom senso, etc., possibilitam cultivar aqueles de bem.
Seria ótimo se existissem
apenas mundos perfeitos, onde somente os princípios mais nobres e elevados como
a ética, o respeito, a honestidade, entre outros, se manifestassem, mas infelizmente
para cada uma dessas qualidades existem seus contrários, antônimos, que de alguma
forma devem ajudar a compor o equilíbrio que mantém essa essência, talvez imperfeita,
de aromas que compõe a fugaz vida humana. Talvez se o homem vivesse nesse mundo
onírico, estivesse mais ciente de sua própria miudeza, seres que perderam a
noção de sua essência primordial de carne e osso, alimentados pelos arroubos da
inteligência, que distorcida, os faz achar que são melhores e superiores, uma obra
do divino que lhes avaliza a vida eterna, quando a existência da criatura humana
não passa de um breve lampejo diante da história do universo, insinuando a insignificância
dessas vidas perante a magnitude do cosmos.
Embora o homem possua
noção de si mesmo e tenha conseguido modificar o ambiente que o cerca tentando
adequá-lo as suas necessidades, muitas vezes destruindo mais que construindo,
não muda o fato da indiferença para consigo e com os outros a sua volta. Sua
percepção egocêntrica, muitas vezes supera a causa principal do que poderia ser
parte de sua essência, ocultando suas qualidades mais notáveis à sombra da indiferença
que compromete seu comportamento. Essa carapaça psicológica blinda a
sensibilidade e os sentimentos humanos para com a vida, o mais caro dos
presentes, tornando-a comum e ordinária frente a outros objetivos terrenos menos
essenciais e somente ao final dela percebe-se o quanto eram supérfluos e
dispensáveis. A dádiva de viver perdeu parte de sua relevância para o homem
contemporâneo, mergulhado nas utopias das verdades supersticiosas ou na cegueira
do materialismo crônico, isola-se na auto-suficiência de si mesmo e com seus
sentidos entorpecidos, ignora a oportunidade de conviver e compartilhar suas
experiências com outros que não se encaixam nos padrões de seu mundo comum,
deixa de conhecer a essência alheia, enclausurado pelos preconceitos e verdades
que elegeu como absolutas, furtando-se da possibilidade de aprender um pouco
mais sobre si e a humanidade da qual faz parte, desprezando a chance justa que a
Natureza lhe concedeu.
Ao percorrer os
caminhos do destino é provável que vida humana reflita em sua trajetória o
antagonismo que prevalece sempre como um divisor de águas, demarcando de forma
invisível, porém real, a diversidade de culturas e credos momentaneamente indispensáveis
para fecundidade do solo onde germinam diferentes mentes e diferentes mundos
dentro de uma mesma Terra, o heterogêneo prepondera criando a diversidade que
poderia temperar o caldo da evolução do homem, mas a pluralidade de pensamentos
divergentes esbarra na incompreensão e na intolerância daquilo que deveria
amalgamar e não desagregar a mistura do “bicho homem”, criando grumos,
isolando, ao invés de unir a família humana. A situação pode ser ainda mais
complexa quando se considera que pessoas que pensaram conseguir livrar-se das
crenças e doutrinas cultivam a mesmas deficiências daqueles que tanto criticam,
esquecendo-se da causa porque lutam; inconscientes de que estão corroendo sua
própria essência frente suas atitudes. Muitas vezes o deboche permeia a conduta
do homem “livre e intelectualizado”, fazendo-o esquecer de respeitar as
limitações individuais, ignorando que ao menosprezar expressões do tipo “que
Deus o ajude”, ele está incorrendo na ingratidão e na arrogância para com
aquele que provavelmente manifestou seu sentimento com a melhor das intenções,
de forma verdadeira e despretensiosa, mesmo sabendo que aqueles que veneram
podem sucumbir à “tentação” do proselitismo. A superficialidade aparente do
intelecto não é capaz de ocultar o vexame que se está exposto quando se
desdenha da condição do próximo sem perceber a miséria da posição em que se
encontra, confortado pela imaginária alforria e iludido com mediocridade da
racionalidade superior, que não passam de um tênue reflexo frente aos
questionamentos que sua própria existência lhe impõe.
A subjetiva liberdade,
fonte de tantas controvérsias, existe na medida exata das verdades que cada um
acredita, estabelecendo individualmente parâmetros relativos que estão
vinculados as vivências pessoais do ser em questão, atrelando-o ao “modus
vivendi”( concessão na disputa entre partes para permitir vida em conjunto) do
espaço que habita. Esse encarceramento determina involuntariamente parte da
essência do homem, fazendo com que ele crie seus próprios muros, turvando a
mente para imparcialidade, impedindo-o de decidir fundamentado apenas nas evidências
que vida lhe apresenta. O problema posto a mesa reside no fato de que ao pensar
assim o ser humano elege para si uma personalidade que estampa as conveniências
políticas, sociais e religiosas que julga procedentes, levando-o a agir de
acordo com as convenções de terceiros e não em função se si mesmo, comprometendo
sua forma de ver o mundo e como ele se relaciona com os outros. Essa
compreensão cria realidades particulares que dificultam o entendimento da
liberdade alheia, considerando-se que ao usar critérios pessoais, esse ser
deixa de compreender as diferenças comportamentais que caracterizam a
individualidade humana, portanto, ignorando que sua essência não
necessariamente deve ser igual ou prevalente sobre a de outros iguais a ele.
Essa criatura
inteligente, chamado homem, dito racional, inadvertidamente ou propositalmente
assumiu uma posição espiritualista em relação à causa de sua própria existência,
condicionando-a a transcendência da vida, no entanto, não há como ignorar a insuficiência
destes postulados na medida em que essas afirmações se respaldam na maioria das
vezes em narrativas vagas e carentes de uma comprovação mais ampla dos
fenômenos em torno deste assunto, coisa que de certa forma contraria a aludida
razão. Essa adesão as verdades dogmáticas suscitam uma série de interrogações a
respeito da essência humana e da finalidade da vida dentro deste escopo. O
conforto trazido pela possibilidade metafísica da vida após a morte poderia ser
um dos motivos para tal, essa expectativa assegura aos crentes que mesmo padecendo
dos sofrimentos da vida terrena, poderiam desfrutar do paraíso após a morte
física, mais que uma esperança essa crença traz felicidade para muitos seres
que não tem muito a que ou a quem se apegar justificando para estes a
importância de sua essência “divina” fazendo-os conformar com os flagelos da
natureza física que lhes é inerente, extrapolando as contingências da vida
humana e transcendendo para além dela, logo, é mais que compreensível que o
homem busque este tipo de alento, uma vez que felicidade é essencial enquanto
energia motivadora para própria existência humana.
Mesmo que o cenário
acima possa espelhar o pensamento que grande parte das pessoas tem de si mesmas,
esse quebra-cabeça chamado “essência” continua incompleto. Nos dicionários a
definição de essência é ampla, abordando todo tipo de significados, neste caso
o mais adequado é: natureza íntima das coisas; aquilo que faz que uma coisa
seja o que é, ou que lhe dá a aparência dominante; aquilo que constitui a
natureza de um objeto, no entanto, o homem enquanto objeto possui uma série de
peculiaridades que o destacam das outras criaturas deste planeta, fazendo
também com que sua essência seja peculiar. O entendimento dessas
características singulares faculta ao ser humano a compreensão de que ele é a
essência dele mesmo enquanto indivíduo, e essa construção passa faltamente
pelas experiências que a família, a cultura, as crenças, enfim, a vida lhe
proporcionaram. Deste modo, não seria verídico afirmar que a essência humana é
naturalmente boa e homogênea, esta teoria fracassaria na primeira pesquisa
amostral que se fizesse de qualquer sociedade humana, demonstrando quão variado
e divergente é o comportamento das pessoas em função das opções a que cada um
teve acesso na construção do seu “eu” durante a vida e as consequências
advindas do acúmulo dessas vivências.
Independentemente das
escolhas que se faça, cada um é responsável pelo que é, exceto é claro, quando
se sofre de algum distúrbio psicológico. Mesmo que esta afirmação soe demasiado
categórica, observe que o excesso de complacência para com terceiros sempre tem
limite, mas o contrário, no entanto, não é verdadeiro, sim, porque qualquer um é
incansavelmente tolerante para com seus próprios erros. É exatamente essa
postura falível que pode comprometer a essência do que se é, partindo do
pressuposto que todo homem tem o direito ou a liberdade de agir de acordo com
sua consciência. Essa premissa imputa ao individuo a responsabilidade sobre
seus atos, assumindo o ônus da existência e o de vencer de maneira digna os
desafios e problemas que vida lhe apresenta, deste modo, ser racional é asseverar
que as atitudes sejam balizadas nas reflexões pessoais, fazendo com que os
conceitos e valores morais sejam embasados e assimilados, permitindo fazer o
bem a si próprio e aos outros, conscientemente, e não porque os postulados
sagrados afirmam a necessidade de ser bom para se alcançar a salvação.
É possível que nunca
consigamos definir com certeza o que é a “essência humana”, o espectro de
fatores sociais, culturais, científicos e religiosos que intervém no
significado dessas duas palavras é tão diverso que torna praticamente
impossível redigir um parecer conclusivo sobre o assunto, contudo, se
considerarmos que parte de nossa essência está associada às experiências e
compreensões que tivemos da vida dentro de um contexto histórico particular
regido pela “livre” atuação de nossa consciência em paralelo a um conjunto de
eventos externos ao “eu” que não podem ser ignorados como elementos estruturais
que contribuíram para construção de nossa individualidade de acordo com nossas crenças,
necessidades e observações íntimas sobre eles num âmbito pessoal e social que
fatalmente determinaram a adoção deste ou daquele critério em detrimento de
outros, podemos afirmar com alguma margem de segurança que assim como o
espírito, pressupondo sua existência, cada indivíduo, fundamentado pela sua
formação e suas convicções, constrói sua própria essência.
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