No universo das virtudes humanas, existem algumas palavras
discretas, que são pouco lembradas ou comentadas, a palavra lealdade talvez
seja uma delas. Alguns dicionários a colocam como sinônimo de fidelidade, será
mesmo? O fato é que a lealdade parece abarcar um significado mais amplo, algo
mais abrangente e controverso; uma palavra que embute a insegurança da opinião parcial
daquele que observa a cena de dentro do cenário e a ótica distante da plateia, que
não é capaz de compreender todo enredo até o desfecho da trama, mas que ao
final pode elaborar seu julgamento a partir do que foi observado.
É interessante ressaltar que está palavra, sabe-se lá por
qual motivo, ficou aparentemente imune às influências dos conceitos morais,
religiosos, sociais e políticos que ditam o “bom” comportamento do homem, tanto
é verdade, que os dicionários trazem em suas definições sobre a palavra
lealdade, coisas do tipo:
Qualidade, ação ou procedimento de quem é leal;
Sincero, franco e honesto. Fiel aos seus compromissos
Existem muitas outras definições, mas para resumir, pode-se afirmar
que lealdade é possuir honestidade, franqueza, sinceridade; enquanto o termo
fidelidade exprime a exatidão em cumprir suas obrigações, em “pagar” suas
promessas.
Ao contrário da lealdade, a fidelidade não teve a mesma
sorte, a sacralização dessa palavra a converteu num ícone, banalizando a
essência de seu significado e dando outra conotação ao vernáculo, ela tornou-se
um instrumento de doutrinação, sendo empregada a todo o momento para lembrar,
por exemplo, que a “fidelidade” ao Criador deve ser incondicional, impondo aos
“fiéis” uma “verdade” que eles devem obedecer cega e “fielmente”, sem
questionar a natureza daqueles mandamentos forjados no fogo da manipulação
dogmática, do temor e do castigo celestial. O conhecimento, a vontade, o
pensamento próprio e a liberdade, são uma ameaça a fidelidade, como parecem
afirmar alguns que se arrogam estar acima das pessoas comuns, gabando-se de sua
fidelidade ao “verbo”, proferindo sermões aos demais, do alto de sua
“sabedoria”, como se ali estivessem manifestando a vontade de Deus diante dos olhos
dos crédulos,que incautos à ameaça que os cerca, aceitam conformados a sua
condição inferior, aprisionados pela teia da ignorância de si mesmos.
Mesmo que tudo indique que estes significados reflitam a
compreensão dessas palavras no conceito comum, ordinário, podendo-se dizer,
politicamente “correto”, há, no entanto, uma evidente associação entre lealdade
e fidelidade, apesar disso é possível destacar algumas particularidades, a
lealdade expressa de forma mais eloquente a cumplicidade, a amizade, é um
pré-requisito para a outra, enquanto a fidelidade está mais relacionada ao
comprometimento, fato que de certa forma restringi a aplicação do termo ao
compromisso assumido, aquele que se submete em função de alguém ou de alguma
coisa, é configurado numa relação de confiança, de mutualidade, que determina a
qualquer um que se diz fiel, seja lá ao que for, a necessidade obrigatória de
seguir uma determinada linha de conduta política, religiosa, ideológica, e que
cuja pena em caso de desvio, caracteriza a mácula da traição, da infidelidade
aos conceitos que anteriormente se admitiu. Poder-se-ia insinuar que a lealdade
exprime uma qualidade que se dá por opção, de forma natural e a fidelidade como
se resultasse de uma restrição, uma imposição.
A lealdade transparece um aspecto mais fluido, profundo e espontâneo,
fato que não a isenta de também poder estar ligada a correntes doutrinárias,
políticas ou ideológicas, porém como assinalado acima, essa conotação aparenta ser
mais branda ou menos contundente.
Especular sobre este tema suscita tantas reflexões que é
praticamente impossível não extrapolar o assunto para o legado cultural de que temos
sido vitimas ao longo dos anos e que por tanto tempo vem sendo inculcado na
mente dos mais novos, submetendo-os a toda sorte de preconceitos e regras de
conduta que convergem com os ditames sociais e religiosos. Resiste a esperança
de que essa linha comportamental venha perder força ao longo tempo, graças ao
acesso ao estudo, o conhecimento e a cultura que libertam a mente desses
paradigmas doutrinários e tabus. Não é segredo algum que ainda hoje exista
entre os jovens um certo culto em torno da virgindade, aludindo a castidade daquela
mulher que paradoxalmente foi mãe, sem nunca ter amado um homem, sendo
inseminada pela providência divina, expressando o clímax da fidelidade que se
presta ao Criador, como ainda fazem muitas mulheres que se entregam a vida
eclesiástica.
Há também o preconceito machista de alguns homens que se
vangloriam desta escolha feminina, “companheiros” de esposas que se pouparam
para o “homem de suas vidas“, muitas vezes abrindo mão da própria felicidade,
uma vez que pouca referência tem para elaboração de algum juízo de valor sobre o
amor dado por aquele homem a quem chamam de marido, que em muitos casos não
retribuem a conduta recatada de suas parceiras, ignorando o sacrifício que lhes
foi oferecido, refletindo além da infidelidade conjugal, a deslealdade e a
ingratidão, em nome de sua questionável virilidade masculina, muitas vezes
regida simplesmente pelo instinto.
Claro que esta discussão que nos inquieta desde os primórdios
da história humana tem suas peculiaridades, é interessante observar que embora
seja contraditório, a lealdade e a fidelidade não são inseparáveis ou
complementares como parece, uma coisa não está condicionada a outra, seria muita
ousadia dizer que um casal pode ser leal e infiel ao mesmo tempo? A primeira
vista parece que sim, mas ao se observar os relacionamentos ditos “modernos”,
ou aqueles chamados “abertos”, “liberais”, a ótica sobre o assunto muda de
ângulo. O tal “swing” ou troca de parceiros, é a infidelidade consentida e
participada de cada membro deste relacionamento, em que houve um consenso
anterior onde ambos concordaram com as regras do jogo, portanto, se foi
pactuado, não houve traição. Neste caso, a infidelidade não está desassistida
da lealdade, afinal, poder-se assumir que deslealdade ou ser desleal consiste
em fazer algo escuso, sem o aval ou consentimento moral do outro, uma dedução
simples, mas que traz a reboque a lógica que lhe é inerente, desmistificando a
sagrada fidelidade e desvencilhando-a da lealdade.
Outro aspecto relevante que paira sobre a distorção do significado
de fidelidade é aquele que incute sobre esta palavra a ideia do egoísmo, algo
que é comparável ao vínculo que se faz a um juramento ou uma promessa. Os seres
humanos tem uma inclinação natural a querer “possuir” coisas além daquilo que
chamamos material, não é raro observar que o ato de possuir extrapola do objeto
para a pessoa amada, “beltrano é meu”, “fulana é minha”, em resumo, na vida a
dois, por mais que um queira pertencer ao outro, essa conduta possessiva e
exclusivista adquire um contorno materialista, o do direito de propriedade; neste
comentário não está se aludindo ao adultério ou coisa parecida, mas sim ao que
interessa, a divergência entre a fidelidade e a lealdade. Não é difícil perceber
que na vida de um casal, independentemente se terceiros são ou não bem vindos, que
existe uma discordância entre o “eu” e o
“nós”, “meu” e “seu”; a fidelidade não embute em seu significado esta
abrangência sobre a cumplicidade do sentir e do pensar que devem reger uma
relação sadia entre duas (ou mais)* pessoas. Num relacionamento saudável ninguém
precisa concordar sempre com o outro ou baixar a cabeça às vontades de um dos
lados, que o digam as mulheres, notoriamente, algumas ainda são vítimas,
subjugadas a força a este tipo de situação. A lealdade não cobra do parceiro a
obrigação do compromisso assumido, como evidencia a fidelidade, ao contrário,
está balizada no equilíbrio, na sensatez, na vontade de querer o melhor para sua
cara metade, ela é celebrada quando ambos alcançam o objetivo juntos, de forma serena,
tranquila, sempre respeitando os limites do outro e os valores celebrados entre
eles.
* A palavra fidelidade é de certa forma exclusiva, no âmbito
familiar seu uso se limita praticamente ao casal, excluindo os filhos e parentes
de merecedores dessa qualidade, no entanto, a lealdade não. Qualquer pai, mãe,
filho ou parente podem ser leais entre si, e embora não seja usual, também
fiéis às pessoas e aos princípios morais que norteiam as boas atitudes no
convívio familiar e social.
Uma pessoa leal constrói dentro de si uma base sólida de
valores e conceitos éticos que a tornam em primeiro lugar fiel a si mesma, as
suas ideias e convicções, mantendo-a sempre aprumada, consciente de que a
traição principia internamente, no pensar e no sentir, dentro de cada um, local
em que suas consequências podem ser contidas, resguardadas do mundo real,
portanto menos danosas. Submeter-se a essa provação faz parte da vida,
gratificando o ser humano de que ele é capaz de superar seus instintos e
deficiências. A tarefa pode ser árdua, mas não é impossível, desde que se
queira vencer o comodismo e a superestimação, aproveitando o teste para
averiguar a quantas anda o nível de racionalidade e como está o domínio sobre a
impulsividade. Tudo isso faz rememorar que embora homem não seja perfeito, não deve
se entregar passivamente para as fraquezas que o assolam e descambar para a
libertinagem. A exteriorização destes pensamentos e sentimentos materializa a
traição, a falta de lealdade com si mesmo e com os valores que num certo
momento se acatou livremente por opção, convicto de que se tratava da melhor
escolha. Essas atitudes muitas vezes impensadas configuram o desprezo pela
confiança concedida e demonstram a ruína da própria dignidade, é olhar para o
espelho e ver refletida a fraqueza do caráter, a falsidade, a falta de
comprometimento com aqueles que acreditaram em alguém que não merece o respeito
que recebe, para aqueles que possuem alguma consciência, é relembrar que se é
desleal.
Lealdade e fidelidade. Duas palavras complexas e
controversas, principalmente fidelidade, a quem estão associados uma variedade
de aspectos culturais que influenciam sua interpretação de acordo com as convenções
sociais e religiosas locais, enfatiza que não importa como elas serão
empregadas, o que importa é compreender seus significados e se possível, colocá-los
em prática. Ser leal é simples, é guardar um segredo, estender a mão que acode,
ser discreto e educado, resumindo, basta fazer o bem, é suficiente. Qualquer
conduta de bem, provavelmente, levará a fidelidade aos bons princípios a
culminar nela própria, como consequência de uma postura leal.
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