quarta-feira, 18 de julho de 2012

O traidor de si mesmo



Muitas vezes o ser humano entorpecido pelas crenças não percebe seus movimentos mentais, deixa-se levar por elas como se estivesse hipnotizado, porém desperto. Mesmo aquele que se acha imune ao poder destrutivo das crenças pode sucumbir frente a elas sem ao menos desconfiar. É a certeza dessa falsa imunidade que faz com que muitos destes seres, crentes de si mesmos, se considerem mais capazes de compreender o mundo a sua nossa volta, fazendo germinar dentro de cada um a moléstia da soberba.

Em geral, o traidor de si mesmo é hábil com as palavras, voz firme e convincente, ardilosamente é capaz de utilizar a pena como se empunhasse uma esgrima e ao falar usa língua como a víbora, que cheira o ar a busca de sua vítima. Prolatando sua verdade ou registrando-a sobra à lousa, o faz de maneira tão ferina que faz verter o seu próprio veneno e este escorre caudaloso sobre si empoçando a sua volta, mas ele não o percebe, pois vê-se espelhado nela, assim como Narciso que acha feia a imagem que não o reflete. Cego pela sua sede de demonstrar-se detentor da razão ignora que faz transparecer as nuances mais sombrias de sua personalidade, como a ira, a intolerância, a vaidade, a intransigência, o rancor e tudo mais de vil que possa existir nas deficiências humanas. 

Esta criatura superior, que está acima do bem e do mal, na verdade é um impostor, que se vale de sua oratória afiada e palavras bonitas para aliciar os incautos, pessoas inocentes e de boa fé que impressionadas pelo seu garbo ou sua figura sagrada sucumbem aos seus encantos e se deixam condicionar. Esse mercador da esperança, que se diz emissário da verdade, nada mais é que um parasita, uma praga a ser combatida, não que seja fácil identificá-lo, assim como a larva da borboleta que assume outra forma bela e delicada, ele também pode transfigurar-se, como o lobo na pele do cordeiro.
  
Fazendo-se passar por santo, arvora-se ao direito de propagar o fel que sua mente destorcida foi capaz de produzir. Seu amor-próprio é tal, que ao fazê-lo subestima a inteligência alheia, imputando a todos aqueles que pensam de um modo diferente a sentença que ele mesmo concebeu e julgou, porém, esquece de ater-se as evidências e se compromete mais do que deveria ao tentar defender sua pretensa verdade, ignorando que deva apresentá-la para não se tornar vítima da própria peçonha, já que a verdade é irrefutável, consubstanciada na realidade dos fatos.

Empostado no alto de sua arrogância regozija se com sua obra, como o artista míope que pinta o mais bizarro dos quadros, para o deleite seu, e de outros, que assim como ele, inconscientes de sua condição de escravos prosélitos, se contentam com o gosto da ração que o novo feitor lhes concede. Desta forma, na mais completa obscuridade, com suas mentes entorpecidas e suas visões enturvadas, são incapazes de perceber o mal da crença que vos aflige, crédulos de que estão fazendo o Bem para si próprios, quando até mesmo o masoquista lhes inveja o flagelo.

Todavia, esse embusteiro tem uma fraqueza, a idolatria, que abriga em seu ventre a semente do fanatismo que lhe engessa a razão. Basta observar com atenção para descobrir um objeto de reverência, que seja uma pedra, mas ele estará lá. Portanto, deve-se ficar atento a ingenuidade, esquadrinhar o território desconhecido antes de adentrá-lo, e, se por um acaso, encontrar algum ícone, previna-se, porque ninguém, além de si mesmo, será capaz de redimi-lo.

Ao despertar de cada dia, numa vigília infindável, deve examinar-se internamente pelo benefício próprio, porque qualquer um, até o mais insuspeito dos seres, ao querer difundir sua “sabedoria” a respeito da vida, pode tornar-se, um traidor de si mesmo.

Um comentário:

  1. Compartilhador Luiz, boas noites!

    Parafraseando o Exaltasamba em “Atire a primeira pedra”, eu digo: Quem nunca foi entorpecido pelas crenças, atire a primeira pedra. Eu não conheço ninguém que não sucumbiu a alguma crença, quer seja esta religiosa ou ideológica. Até quem passou a vida tentando desmistificar as crenças e as ideológias, como penso que foi o caso de JK, houve época que ele foi entorpecido por uma crença organizada (no caso a Teosofia). O importante é, em algum momento da nossa caminhada, descobrirmos o falso como falso. Certamente, em nosso caminhar, essas descobertas serão poucas e darão origem a muitas perturbações. Mas, no fundo do meu ser, sinto que com a continuidade de um caminhar com atenção passiva, ajustes profundos serão feitos, e mais poderemos observar o falso como falso.

    Se um dia já fui um traidor de mim mesmo, isso é passado e o passado para mim é morto. O ontem tento “enterrá-lo” todas as noites. Por vezes, não consigo, mas continuo tentando. No que é possível só olho para o presente, para o momento. Percebo que isso torna minha vida mais simples. É essa a trajetória que estou tentando imprimir na minha caminhada, mesmo com minhas limitações.

    Vez por outra nosso caminhar é ativado, não sei se pela providência, ou por algo qualquer que seja o nome que lhe damos. O importante é que nesses momentos nos enchemos de ânimo para prosseguir a caminhada. Luiz esteja certo que “O Idiota Inteligente” está cumprindo esse processo de ativador na minha caminhada. Vou deglutir este e os próximos textos nele publicados e, na medida do possível, ruminá-los e assimilar o que estiver ao alcance da minha compreensão.

    Abração,

    Roberto Lira

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